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A mania.

A mania de ir à janela só agora percebi.

Fui seis vezes hoje espiar paisagens que não gosto, pois, do décimo andar, a visão é sempre de prédios mais altos ao lado e o céu escovado ultimamente por nuvens escuras, que substituíram, bem devagar, o longo tempo de estiagem.

Não vejo prazer em olhar para prédios tão feios, com pintura desgastada pelo tempo. E o que é pior. Agarrados por carrapatos como ar condicionados velhos e barulhentos.

Tudo tão distante e tão próximo ao mesmo tempo!

Mesmo assim, a distância entre a calçada lá embaixo até onde estou, porém,  parece não medir bem a mania que me tomou de uns dias para cá.

A repreensão da chefia, que vejo de relance com a ponta dos olhos no outro lado da sala, realmente não me fez bem; tem-me feito doer à cabeça sem aspirina nenhuma fazer efeito.

O resultado parece óbvio: além da cabeça doer, não consigo transpirar.  Sensação de tontura e vertigem, corpo gelado por fora e quente por dentro. E o que é pior: a mania.

Diagnóstico médico precoce chegou à conclusão de que estou com suspeita de anidrose.

A origem do problema, porém, só pode estar nesta assombrosa paisagem que não gosto.

Não a que vejo além dos vidros da janela suja abundantemente pelo cocô dos pombos. Mas a que cresce assustadoramente atrás das minhas costas.

O cara da esquisita mesa oval de madeira, revestida em cor laranja bem forte, conversando alto no telefone para todos ouvir, errou.  Sim, errou.

Consumo anormal de resma de papel, principalmente para pintar estas paisagens funestas, motivo que aleguei, não é motivo suficiente para mostrar manifestação de autoridade perante os subordinados.

Reunir toda a equipe para repudiar insignificância não parece a proporção adequada para mensurar o caráter de uma autoridade.

— Pois bem, ele não deveria ter mexido com este…

— Este é o quê? Pergunto uma voz masculina muito grave e sombria como que me provocou arrepios e calafrios, bem piores do que os sintomas da anidrose.

— Meu nome.

— Ainda sobre o nome?

A pergunta do estranho me assustou, pois eu não o conhecia e nunca o tinha visto; perguntei quem era, ele respondeu-me que era empregado da firma.

Trabalhava ali desde a inauguração do prédio quando a companhia se mudou para esta merda. Não se enturmava com o grupo porque gostava de absorver o que as pessoas tinham de melhor.

Só assim julgava que se aproximaria.

— O veneno do vice chefe é perigoso – disse-me ele bem sério –, pois destrói a pretensão da afirmação de qualquer um. Ele cheirou ameaças de pessoa mais jovem e bonita como você. Fez o óbvio. Então te empurrou, seu bobo!

Reagi como se tivesse gostado do conselho.

— Por que você me fala justamente agora? Se achou absurda a atitude dele, não acha que os pêsames vieram tarde demais?

— É que também ele jogou meu brio lá embaixo.

A medida em que ele falava, mais curioso ficava. Então me virei, lentamente. O homem era, na verdade, uma pessoa de alta estatura e usava roupa que se parecia com o ambiente onde eu estava. Ele usava roupa cinza.

— Não se assuste comigo, pois gosto de me vestir assim. Chamar a atenção tem seu preço, e é o que não tenho agora.

Ficamos conversando por muito tempo. Quando percebi, só restava eu no escritório. O expediente havia acabado há quase duas horas!

O cara era realmente bom de conversa, pois eu não cansava de ouvi-lo. Lembro-me muito bem da última palavra:

— Eu acho que o espertinho se aproveita da pinta de galã de olhos azuis, como ouço das mulheres aqui, para pisar nos adversários. O escorpião sabe utilizar bem das armas de que dispõe.

Ele viu que você era um adversário de pouco valor, mas um adversário. Pessoas assim merecem ser descartas logo. É o que ele parece pensar.

As revelações do desconhecido me trouxeram mais ódio contra a figura da mesa oval. Por outro lado, minhas pupilas brilharam quando ouvi revelações, semelhantes às que se passavam na minha mente, na boca de alguém.

Duas vítimas não mortas são armas ainda vivas, pensei.

Antes de ir embora, ele me disse que tinha encontrado a revide. Se eu estivesse interessado, eu devia procurá-lo na saída.

Descobri na saída do prédio que o sinistro ser se chamava Sabugo. Nome muito estranho, é verdade, porém bem condizente com a roupa que usava. Mesmo assim, a atitude, os modos de se expressar, a firmeza na voz, tudo nele era de uma objetividade sem igual, inclusive no conselho:

— Não se deve ter pena; assim que aparecer, empurra o todo-poderoso quando ele estiver passando sobre a escada de acesso exclusivo ao escritório dele. Nem ele nem a secretária vão te ver, pois, do lado, tem uma porta de incêndio que leva a outras saídas.

A sua sorte é que há uma outra saída, disse-me batendo nas costas e pegar um táxi, automóvel que parecia também sombrio, de uma cor escura como a noite.

Lembro-me, porém, da sentença anterior proferida por Sabugo:

“Ele jamais vai se recuperar de uma contusão do joelho que sempre reclama. Todos sabem do problema porque o falastrão faz questão de dizer que é craque de futebol.

A próxima novidade que ele contará é que vai trocar as duas pernas por quatro de uma cadeira de rodas. Será um homem inválido cujas mulheres olharão com pena, e não mais com admiração.”

Peguei meu fusca velho, mas o barulho do escapamento do carro não me incomodava tanto quanto a indagar-me: Mas por que tinha que ser eu?

Não encontrei a resposta, de imediato.

No dia seguinte procurei ansiosamente por Sabugo. Remexi todos os recintos da empresa, mas não o encontrei. Também tive medo de perguntar por ele. Não sabia porquê.

Encontrar Sabugo era tão difícil quanto ver a lua cheia nestes dias de céu nublado.

Os dias se passaram. Já tinha desistido quando senti um leve tapa no ombro:

— Olhe amigo, eu já me contentei com o insulto do cara. Quanto a você, porém, a expressão do seu rosto me faz crer que não. Alguma coisa me diz que você ainda morde os lábios. Só esta manhã você foi várias vezes à janela; colocava e tirava as mãos dos bolsos da calça.

Arregalei os olhos.

– Como você sabe? Procurei você por todo o lugar e não tinha te encontrava. Agora você reaparece como do nada. Onde você estava?

Outra vez a objetividade apareceu bem rápida:

— Não me observou porque os seus olhos eram para o desgraçado vice chefe. Isso é certamente uma atitude de quem está com um espinho na garganta. Espinho grande de peixe, não do pé de limão.

É preciso arrancar o espinho para fora, antes que você se sufoque pela boca. Até coisa pior pode acontecer.

Não sei como ele me convencia tão rápido.

— E você não faz nada?

— Bem, além do que já falei, posso ficar expiando a aproximação do vice chefe da escada próxima ao escritório dele.

Pela primeira vez fiquei indeciso com meu amigo. Não sabia se acreditava. Na verdade, tinha momento que eu dispensava essa exigência.

Mas agora bem que seria necessário. O óbvio de novo aconteceu. Ele me de novo a falar sobre si. A expressão com as mãos e a fala firme, por outro lado, me faziam crer que compartilharia de minha vingança.

Cada passo que eu daria, podia ser cada passo que ele estaria dando. Por outro lado, jamais pensei em usar da violência contra alguém. As mãos de uma pessoa são para construir a felicidade, e não dispor do contrário.

Acabou que o meu ódio venceu o medo. Se as pessoas soubessem, não causaria ofensa a ninguém. Aceitei os termos da vingança, desde que o enigmático companheiro não me desamparasse.

O novo dia chegou bem rápido, pois tinha tentado passar a madrugada tentando me arrepender. É melhor se arrepender na fase embrionária do que na fase de parto. Pois, depois, tudo é mais difícil. É na fase de parto que muitos não resistem e se destroem.

Certamente que a juíza de todas as horas perseguirá a mente perturbada como a perseguição dos espermatozoides contra o óvulo. Nem mesmo a leitura do “subtítulo da vingança” de Mateus 5 me fez voltar atrás. Deixei Cristo e o remédio para outra hora.

Se tem uma coisa que não devia haver é arrependimento por desonra. Maltratar uma pessoa na frente de todo mundo, é semelhante ao que a lavandeira faz com a roupa. Lava, lava até ficar limpa. Ele me levou a lavanderia para eu ficar limpo. Eu não precisava da limpeza porque eu não pedi.

Se eu peguei a resma de papel, não tinha porque reclamar. Contudo, sou uma pessoa cujo brio está lá embaixo. Ou continuo indo à janela ou então o safado vai me substitui na horrível paisagem que sempre detestei.

Quando cheguei à firma, por acaso encontrei o vice chefe subindo bem devagar às escadas. O cantor não olhava para trás. Ele segurava a maleta que com certeza devia ter os nomes das mulheres que ele já agarrou ali na empresa.

Realmente era boa-pinta, por isso se exaltava perante os anões, como eu, ou perante os de tamanho semelhante, como Sabugo.

Assim que ele subia as escadas que davam acesso ao seu escritório, olhou para trás, pois eu havia tropeçado. Não se assustou. Ao contrário, não se conteve de rir ao olhar para meus olhos.

O mínimo de misericórdia que eu reservava como pessoa tinha evaporado naquele momento.

A revolta cresceu de maneira tal que avencei sobre o cretino, puxando-o pelo paletó. O vice chefe rolou as escadas. Assustado, me aproximei. A cabeça do desafortunado estava sangrando. Mesmo assim, ele me puxou pelo colarinho.

Ao invés de correr, gritei.

O grito me fez acordar. Chateei-me, pois, era apenas um sonho. Como o sonho faz a gente se frustrar! Mesmo assim, todo o meu pijama estava molhado. Revoltei-me mais ainda quando olhei para o relógio.

Já era mais de oito horas da manhã, e o vice chefe possivelmente já tinha chegado. Eu estava atrasado. O plano daria errado.

Uma mensagem no celular vinda possivelmente do Sabugo dizia para a gente se encontrar no galpão de computadores velhos.

Cheguei e já estava me esperando.

— E aí, você conseguiu sobreviver à noite?

— Nunca estive tão bem quanto hoje. O idiota de pernas tortas vai ter que pagar pelo que fez! A repugnância é um crime hediondo, embora, creio eu, não esteja na lei.

— Finalmente, sinto que as suas palavras proveem de um homem que parou de ir à janela.

Após combinar os detalhes, despedimo-nos sem apertar as mãos.

A manhã toda voltei a praticar a minha nova mania. Desta vez a ida à janela foi bem superior aos das outras vezes. As ideias esquisitas, repentinas, de pular dali para baixo realmente seriam dar munição ao vice chefe.

Como a autoridade ia rir da minha desgraça! Um prêmio conquistado sem muito esforço. Olhando o abismo agora, quem devia cair era o pilantra.

O telefonema do Sabugo interrompeu meus pensamentos. Disse-me que não ligara antes porque o chefe tinha se atrasado, mas que, agora, o insolente já tinha estacionado o seu Audi de quatro canos no estacionamento privativo. Pediu para que eu fosse para o lugar combinado imediatamente.

A palpitação sanguínea palpitava semelhante a batida de um tambor. Não me via usando da violência para obter êxito. A circunstância nova, infelizmente, exigia uma coragem que eu nunca tive.

Usei de todas as precauções para que ninguém me visse. A palpitação sanguínea que subira agora a pouco, tinha desaparecido. Eu estava tranquilo. Será que a frieza dos piores elementos que a polícia lida todos os dias tenha se apoderado de mim? De qualquer forma, eu me sentia outra pessoa.

Ainda encontrei com Sabugo. Ele falou que o hábito do vice chefe era passar pela solitária escada privativa, antes de chegar ao escritório. Eu me escondi detrás da porta de incêndio.

Minutos depois ouço passos e assovios. Era o grandalhão que aparecia invadindo o espaço onde se achava insuperável. Que ódio o ver se agigantando diante de meus olhos cantando! O chato certamente está cantando porque confiava que era sempre um vencedor. Você merece morrer, seu desgraçado!

Pouco tempo depois, não me contive e gritei, assim que o cantor deu as costas para mim. Assustado, desequilibrou-se, rolando escada abaixo. A cena não me amedrontou. Não tive pena do mesquinho chefe.

Mesmo assim, me aproximei. Vi que saia bastante sangue da sua cabeça. O vice chefe estava imóvel. Repentinamente a a aparência assumiu a feição de um morto, pois nem mesmo a respiração se ouvia.

Agi com naturalidade ao sair da cena do crime. Com tanta naturalidade que, curiosamente, não tive saudade do Sabugo.

Os dias se passaram e não tive a coragem de procurá-lo. Pelo contrário, não queria me encontrar com ele. E se ele me denunciasse à polícia?

Para minha surpresa, o fim do poderoso foi aceito com muito convencimento pela polícia. O atlético vice chefe escorregara nas escadas, e a batida da cabeça no último degrau foi o responsável pela sua morte. A fatalidade ocorre no trabalho.

A euforia foi tanta que procurei Sabugo para compartilhar da vitória. Um colega me disse que não trabalhava ninguém com esse nome na firma. Dei todas as descrições possíveis, inclusive a de que ele tinha mais de um metro e noventa de altura e usava uma roupa camuflada conforme a cor do ambiente.

A resposta, entretanto, era sempre a mesma. Meus olhos não podem ter se enganado. Por muito tempo fiquei lembrando das conversas com Sabugo. O único consenso que que é conversei com ele. Para mim nada era mais cristalino do que a razão.

Ocorre-me, contudo, o pensamento que temo: talvez Sabugo tivesse ido embora após ter me usado. A vontade era matar o vice chefe.

Por outro lado, pode ter ocorrido outra hipótese. A velha e conhecida paisagem que vejo daqui de cima. Pensando bem, a paisagem é bem mais feia do que eu imaginava. Parece que se contorce e ganha vida em meus pequenos olhos.

As cores cinzentas e uniformes, o cheiro fedido do cocô dos pombos, o barulhento ar condicionado, tudo parecia, inexplicavelmente, apontar para meu obscuro amigo Sabugo.

Voltei mais tarde para espiar o ambiente. Aquelas paisagens tinham alguma coisa que eu ainda não tinha captado como agora. Parece que vi Sabugo saindo de todos os buracos que se possam ver em um sabugo de milho.

 

Brasília, DF, em 3 de dezembro de 2017.

‎A mania. Narrativa de Bomani Flávio

caipirinha

A caipirinha.

Se tivesse desistido da brincadeira de tomar o primeiro gole de caipirinha em uma festa com amigos, não teria gasto a manhã toda de hoje dentro do quarto escuro.

E o que é pior, deitado incansavelmente com os pés para cima. Como se  tivesse sido deixado violentamente naquela postura sem vontade própria.

Saciar a curiosidade serviu apenas para se prender na teia de rede quando jogada no rio.

Mas nunca foi de beber bebida alcoólica. Muito menos caipirinha. Jamais, na verdade, foi a um bar.

Tomar um pequeno copo de bebida alcoólica não achou problema nenhum. Cada pessoa vive, a cada dia, para apreciar ou desvendar os segredos, e muito mais as maravilhas, que há por trás do paladar.

Ninguém vive para reprimir o que a própria natureza sabiamente deu a cada um. Bebeu semana passada e anteontem fez a mesma coisa.

Acontece, porém, que se surpreendeu com o sabor da bebida. A caipirinha  é muito mais gostosa do que arroz e feijão. Muito mais do que qualquer peixe assado ou cozido que tanto aprecia.

O segundo copo que tomou ontem somente comprovou que seu organismo gostou. Miserável paladar que não devia provar!

Desde então não consegue se concentrar ou pensar em outra coisa senão na nova descoberta.

A experiência foi fascinante, mas o que sente na boca é igualmente pior. Se acha um peixe fisgado por um pescador.

Parece que ainda não foi puxado da água porque tem resistido igual a um peixe grande.

Mas as forças estão minando. O pescador parece muito mais forte do que ele; hábil no uso da isca e sente que está em todo o lugar.

A presença dele que se sente pela linha do anzol torna-se cada vez mais forte. Impossível de resistir.

Relutou e relutou. Desde ontem, entretanto, o que mais tem feito é evitar o terceiro e tantos goles que saboreia nos sonhos intermináveis.

Chorou, rezou, ajudou a mãe a limpar a casa, coisa que habitualmente não fazia.

Resistiu o quanto pôde, mas a força do pescador cresceu igual a incêndio na floresta nos últimos dias.

Sem alternativa, finalmente se convenceu a tomar outro copo da bebida. A média de um copo por dia com certeza não faz mal a ninguém. Precisava tomar para se acalmar. Jovem é jovem.

Por que resistiu tanto? Ah, a caipirinha é muito gostosa! Quem inventou a bebida poderia ter ganho um prêmio por ter feito bem a alguém.
Voltou ao bar com os amigos.

Desta vez, a placa de proibição para menor de idade na entrada do boteco não foi empecilho. Não era menor de idade, mas a aparência quase sempre incutia no segurança do estabelecimento entendimento diverso.

Como das outras vezes, o dono atendeu com cortesia. É certo que o pedido saiu tremido pois o coração batia mais descompassado do que de uma pessoa com arritmia cardíaca.

Quando o elegante barriga de navio, que vestia um terno escuro, trouxe o pecado e pôs na mesa, começou a sentir uma espécie de tremedeira.

O que há por trás do reluzente copo de vidro com cachaça, limão-Taiti não descascado, açúcar e gelo?

A contemplação chamou a atenção do dono do estabelecimento que fez cara de quem não se importava.

Parecia ver beleza no copo transparente com cascas de limão à mostra que via diante de seus olhos.

Mesmo tendo superado toda a vergonha e fraqueza para chegar ao local onde nunca deveria ter ido, sentia o coração bater como se fosse a primeira vez para consumir o produto.

Tinha motivo, porém, para o coração bater cada vez mais forte. Sentia como se fosse pescado por um anzol na boca.

Outra vez o anzol puxou mais forte. Coitado dos peixes nas águas, o anzol machuca demais!

A última puxada fez com que entendesse que havia um pescador, um algoz que se revelava cada vez que aproximava sua boca do transparente copo com caipirinha.

Ao contrário das outras vezes, sentiu vontade de beber a caipirinha bem devagar. No primeiro trago, fechou os olhos e deu suspiro de alguém muito sedento.

Saciou-se como um bebê que não via o peito suculento da mãe por muito tempo. Bebe bastante até se fartar.

Embora os familiares e os amigos não notassem mudança nenhuma visível, sentia-se, de alguma forma, encurralado. Tão encurralado como um peixe por um hábil pescador.

A atração pela nova namorada, ao que tudo indica, parecia sem volta. Não queria apenas uma, nem duas, mas tomar vários copos da bebida.

Sonhos frequentes têm sido uma luta. Via-se caído nas ruas, saindo embriagado do bar. Colocou na cabeça que havia um pescador atraindo-o loucamente para o anzol.

Estranhamente começou a ver beleza em um sujo bar perto de sua casa. Lugar que sempre falava que a vigilância sanitária tinha esquecido.
Preferiu conhecer as instalações à noite, escondido dos parentes e amigos.

Ao entrar no apertado recinto, que tinha uma velha sinuca no centro e homens maltratados jogando com cigarro na boca, sentiu uma enorme atração.

Na verdade, sentiu o cheiro de cuspe fresco que invadia o lugar insalubre pelos tocos de cigarros no chão e cuspe para todos os lados. As narinas detectaram novidade.

Como é gostoso estar em um lugar que proporcionam prazer para as narinas! Um lugar onde possa se sentir bem!

Sentou-se em uma cadeira no canto e, pela primeira vez, sentiu-se um arrepio que nunca tinha sentido antes. Queria ir além do copo, pois é além do copo que aparecerá o rosto do pescador.

Pediu o primeiro copo de caipirinha. A mulher entendeu bem as palavras ditas palavras por palavra. Ditas com autoridade.

A princípio, amedrontou-se, mas, ao contrário das outras vezes, não teria forças para fugir. Sabia que embriagar fosse a única maneira de conhecer o pescador que estava por trás do copo de caipirinha.

Quando o copo chegou, a admiração aumentou pela caipirinha. O copo estava tão reluzente quanto das outras vezes. A dona ficava de longe olhando o ritual do novo freguês, que abria e fechava os olhos.

De vez em quando fazia menção de que ia levar o copo na boca. Relutava o quanto pôde.

Mas havia decidido que queria conhecer o pescador.

Uma estranha voz, contudo, quebrou o silêncio. Dizia que no inferno não havia chamas, mas que no céu havia fogo do inferno.
Ao virar-se viu para ver quem tinha falado, viu homem bêbado, que tinha acabado de entrar no recinto, indo conversar com a dona do bar.

Após o bêbado se acalmar, sentado no chão, aproximou-se. O homem podia muito bem ter visto o rosto do pescador.

— Sim, vi o rosto do pescador – disse-lhe o bêbado, que parecia surpreendentemente sóbrio para alguém que tagarelava demais.
Tomou outro gole de cachaça e depois prosseguiu:

— O diabo do mundo é a nossa língua. Ela faz da gente o que quer, meu jovem. Animal tão complexo quanto os olhos. São os olhos fora e a língua dentro. Se deixar te domar, serás presa para o pescador.

Outra vez recorreu a outro gole da cachaça e continuou:

— Certo mesmo é que não devia haver lei contra a saciação. Não devia haver pescador. O que é a pessoa a não ser da gula e do corpo? Deixar de beber é ir contra os olhos e contra o paladar; é ir contra si mesmo.

Perder, não sabe se perdeu. Talvez seja bom ser derrotado porque se conhece o pescador.

 

Brasília, 25 de novembro de 2017 às 21:42.

Texto originalmente publicado
pelo Autor em 26/08/2003
no portal Usina de Letras.

A caipirinha. Narrativa do poeta Bomani Flávio.

aguia

Pandion.

Ele havia vestido a samba-canção para dormir quando ouviu um assobio estrondoso naquela noite em que a lua havia sumido por causa das baixas nuvens da primavera que virou outono.

Ansiosamente desligou a luz do abajur e espiou pelo vitrozinho a paisagem escura. Com a janela aberta, o som inquietava mais ainda os ouvidos.

De onde teria vindo a sinfonia do demônio que apareceu para atrapalhar o sono tão debilitado pelo atípico clima seco e calor de mais de trinta graus? Fechou o vitrozinho.

O misterioso som era mais impetuoso que os estranhos graves e agudos produzidos pela cigarra, inseto da família cicadoidea, que se espalha rapidamente com a chegada da primavera.

Um medo se apossou. Olhou para esposa que roncava suavemente e ficou surpreso porque ainda não tinha acordado.

Também não teve vontade de acordá-la uma vez que as aulas matutinas com as crianças da primeira série realmente tiravam o sono da lindinha de cabelos grandes e morenos.

Finalmente achou melhor acordá-la. Precisava compartilhar a funesta notícia com a querida.

Quando ia tocá-la, a orquestra solitária acabou o canto bizarro repentinamente. Será que o bicho morreu de tanto assobiar? A noite voltou a ficar calma como de costume.

Mesmo assim o medo não passou. O copo que a esposa geralmente levava com água para o quarto estava sem nenhuma gota de água.

Fez menção de jogá-lo contra a parede. Conteve-se. Precisava tomar água para se restabelecer do susto. O ouvido escutou bem a enigmática melodia.

Quando chegou na cozinha, abriu a geladeira. Bebeu todo o litro de água gelada. A água, contudo, não conteve a tremedeira. A sensação de pavor não se dissipou.

Olhou para o relógio de parede, que anunciava oito horas da noite. A noite mal havia chegado e recebia como presente o som de outras terras. Talvez o som do diabo.

A sua mãe tinha razão. A ideia de morar em região semiurbana era perigosa. Lembrou da cachorrinha Fifi cujo latido ainda não ouviu.

Nestas horas ela estaria arranhando a porta de madeira da cozinha como sinal de fome ou de companhia. Pensando bem o silêncio da cachorra talvez venha do medo do extraordinário som.

A explicação não convenceu porque a cachorrinha era valente. Ela enfrentaria qualquer animal. O silêncio da sentinela da casa prenunciava desgraça.

De qualquer forma, ficou até mais tarde assistindo televisão. Reportagem de jornal mostrava muitas cidades dos Estados Unidos sob neve. Surpresa lá e surpresa aqui, em que a escuridão, crescente, se contrastava com o branco mostrado pela televisão.

Não resistiu ao sono. Dormiu ali mesmo na sala.

Sob pesadelo, acordou mais tarde. Ouvia os mesmos sons estridentes de horas atrás. Desta vez o som era tão incomodo quanto milhares de cigarras juntas. Atravessava as inúteis portas e janelas atingindo os tímpanos do ouvido.

Escondia as orelhas entre as almofadas, mas a atitude se tornara insuficiente.

O barulho parava por momentos e retomava com mais força. Não sobrava mais paciência.

Desligou a televisão e foi à cozinha. Precisava achar a lanterna. Estava decidido a descobrir o ator do inigualável som.

E se for realmente um bicho, um bicho grande como um homem, teria forças para lutar? Se fosse em época chuvosa, certamente que teria, pois o corpo reagia bem ao clima úmido e ensolarado.

Ganharia energia e ficaria mais esperto até mesmo para o sexo abundante com a esposa. Não seria um homem de trinta anos capenga de disposição. Olhou para o relógio novamente.

Duas horas da manhã! Pôs as mãos de novo sobre os ouvidos.

Os sons, contudo, foram enfraquecendo, até sumirem.

Voltou ao quarto. Observou a esposa que continuava dormindo e teve pena de acordá-la.

Daqui a três horas a pequena vai levantar e sair às pressas para o trabalho. Resolveu não acordá-la. Vestiu o roupão preto de banho. Faltava, porém, algo. Faltava um facão que estava na salinha de ferramentas, próxima da cozinha.

Após pegar a peça, achava-se pronto para vasculhar o quintal.

Com certeza, pensou, o movimento que fez de dentro reprimiu o sumiço dos sons. Não desistiu, no entanto, da ideia de ir ao quintal. O quintal era seu mundo predileto, pois gostava de cuidar das plantas e da horta. Tinha três mil metros quadrados de área.

Assim que abriu a porta de visitas, sentiu um jato de calor sobre o rosto pálido. A temperatura quente realmente enfraquecia sua energia. Nem para carregar o facão tinha forças. O facão pesava no braço. O ideal seria uma arma.

As folhas das árvores não balançavam. Meio trêmulo começou a revistar. Foi ao portão da casa onde tudo parecia normal. Caminhou paralelo ao muro e nada de anormalidade.

Visitou o galinheiro e, na entrada, se assustou com algo terrível. A galinha que havia comprado na feira estava entrelaçada. Esqueceu de fechar a portinha! O terror continuou.

A cadelinha Fifi também estava morta! A cabeça tinha sido decepada.

O monstro havia comido o restante do corpo. Os olhos estavam tão dilacerados que parecia que haviam visto um ser apavorante. Não havia sangue por perto. O monstro estava com muita fome.

Novamente o medo se apossou. O devorador comia em silêncio! Quem estava entrando em seu mundo? Aqui sempre foi seguro. Segurou bem o facão na mão esquerda. O corpo estremecia.

O assassino estava por perto. Tinha uma coisa a fazer. Correr rápido para dentro da casa e chamar a polícia. E correu, mas tropeçou em uma pedra.

Aliás, tinha esquecido daquela merda que servia para contemplar o galinheiro quando abrigava a galinha. A luz da lanterna se apagou com a pancada. Quando caiu, o enigmático barulho reapareceu com intensidade de causar surdez.

A lua que havia sumido reapareceu com um brilho muito singular. As nuvens opressoras se dissiparam. Tudo havia se tornado claro. Podia-se distinguir qualquer vulto em poucos metros. Ouvia-se barulho de bater de asas muito forte. Pensou nas asas do demônio.

À noite o demônio possui asas. Percebeu que uma ave sobrevoava a sua cabeça. Pouco depois disso, finalmente seus olhos detectaram o ladrão do sono e dos animais. Os olhos detectaram uma ave muito grande e assustadora.

Com o contraste da luz da lua, o bicho parecia fantasmagórico.

Que ave era aquela? O barulho que ecoava era de atemorizar qualquer ouvido. Protegendo-se com asa mão, reunia forças contra as garras do mal lutava contra o maior pássaro que viu.

A luz da lanterna, antes de se apagar, possivelmente acabou cegando momentaneamente o pássaro que bateu com violência contra o poste de vôlei. A ave caiu no chão. O impacto levou-o a acreditar que a intrusa havia morrido.

O som estridente parou instantaneamente com a queda do opressor. Vendo o algoz imóvel sobre o solo, achou-se possuído por um sentimento de vingança. Procurou o facão. Logo que pegou a peça que brilhava com a luz da lua disse adeus à intrusa.

Estaria vingando a morte da cadelinha e poupando os ouvidos.

Enquanto fez o gesto de enfiar a ferramenta contra a ave, ouviu uma voz firme rasgando o silêncio da noite. Olhando para a casa, viu um lindo vulto de branco, com os cabelos soltos.

A esposa pedia para que desistisse da ideia. O veterinário é o último a matar qualquer animal. Ela usou o lema que ele, naquele momento de desespero, havia esquecido.

O ódio leva a gente para trás, pensou. A esposa tinha razão. Se a ave morresse, a filosofia de proteção aos animais perderia crédito.

Quando olhou para a ave, ela se movimentava. Esqueceu o ódio. Um sentimento de caridade levou-o imediatamente a salinha de ferramentas. Pegou uma rede de pesca, lançou-a sobre o animal para que não fugisse. Acoberta pela teia, colocou-a no galinheiro com muita dificuldade.

Amarrou os pés e as asas. Colocou uma focinheira no bico. A ave era mais forte do que qualquer uma que havia segurado! Massageou suavemente o pescoço do bicho.

A luta para pôr a fera no galinheiro tinha desvanecido as forças.

Devagar o sol saía no horizonte. Exausto, foi para a cama. Não percebeu o beijo de despedida da esposa.

Ele, porém, não dormiu muito. Quando se levantou, foi ao galinheiro. O sol de dez horas não dissipou a surpreendente névoa. A noite não havia terminado, mas o clima melhorou um pouco.

Ele respirava com menos dificuldade. Não tropeçou em nada, mesmo a penumbra abundante das nuvens. Sentiu temor ao se aproximar do pássaro.

O pássaro estava a sua frente. Tinha olhos perspicazes. Admirava-se, não obstante, com a grandeza da fera. De onde tinha vindo a ave do demônio? Por que ela resolveu fincar tenda em seu terreno?

Aproximou-se. Tocou-a com receio. O diagnóstico rápido não constatou ferimento, mas o pescoço estava inchado. Ela tinha uma exuberante faixa no peito semelhante a um colar castanho.

Com cautela, tirou a focinheira do bico. Qualquer descuido, o pássaro podia contra-atacar. Pronto. O bico da fera estava livre. Retornou a casa, tomou café, mas não ouviu o assobio esperado.

O contato com a exuberante ave, não obstante, fez esquecer o ódio pelas perdas recentes. O seu rosto ganhou um brilho inexplicável. Recolheu o rosto dos animais mortos sem nenhuma lamentação. Não parecia o homem carrancudo dos últimos dias.

Também não precisou do psicólogo que a esposa tanto cobrava.

Desistiu de trabalhar naquela tarde. Telefonou ao chefe para comunicar a falta. Voltou de novo ao galinheiro. Perdeu uma galinha chocadeira, mas ganhou um pássaro de assas enormes. Que tinha aquela ave que, em pouco tempo, mudou sua disposição mental?

A ave realmente irradiava-lhe felicidade, pois a esposa percebeu mudanças. Ela recebeu flores quando saiu do banho. Fizeram sexo. Quanto tempo sem sexo!

Intrigado com a majestade de hóspede, ele telefonou para um amigo, especialista em aves da Universidade de Brasília. Quis saber a origem do pássaro. Será que era uma ave de outro mundo? Dias depois, recebeu pessoalmente o parecer do amigo.

O pássaro era uma autêntica ave migratória. O professor disse para ficar tranquilo. A ave não trazia doenças que atingiam as aves da Ásia e da Europa. O falcão vinha dos confins dos Estados Unidos ou do Canadá.

Jalilal contou para a esposa as notícias sobre o falcão. Se a ave permanecesse nas regiões de gelo, de onde tinha vindo, morreria. A comida ficaria escassa nas regiões nativas. Os Estados Unidos estavam sob neve. Havia pouca comida.

Na medida em que os dias passavam, crescia a obsessão pelo novo amigo. Jalilal o pássaro como uma ave. Via-a como uma psicóloga. A linguagem do pássaro é a linguagem sem limites, pensou. Se o pássaro estivesse obedecido ao limite das fronteiras, o transtorno não teria ocorrido.

Jalilal retornou ao galinheiro. Chegou a uma ideia. A ave era mais aventureira do que ele. Ela possuía um ímpeto que ele não tinha. Ela voou milhares d quilômetros para a sobrevivência. Desprezou distâncias. Ela sonhava com o pantanal. Sonhava com os Pampas. Sonhava com o cerrado.

Ele apalpou seus braços, incapazes de atravessar uma piscina olímpica. Se fosse fazer uma troca com a ave, não teria condições de físicas para buscar as colinas nativas do Pandion. A sua saúde mental melhorou por que sentiu, por meio do pássaro, que há um lugar onde poderia recuperar a saúde.

Jalilal olhou para a garagem. O Volkswagen popular foi comprado a prestação. Constituiu a casa com empréstimo de banco. O primeiro filho estava para nascer. Muitas dívidas para pagar. As leis para cumprir. A confusão se instalou na cabeça.

Não podia haver uma troca. Restava ficar preso ás teias criadas para prendê-lo.
De repente ouviu um assobio da águia. O falcão assobiava desesperadamente. A noite ficou insuportável. A lua voltou a ficar escondida sob as nuvens.

A esposa acordava a cada momento, pedindo para que libertasse a coitadinha senão morreria no galinheiro. A vizinhança podia muito bem denuncia-los ao órgão ambiental. O galinheiro era pequeno para o falcão. A esposa mais uma vez estava com razão.

Se o galinheiro era pequeno para a estirpe de um Pandion, o mundo também era. O falcão não tinha viajado ao Brasil para ficar preso. Ele viajou para a liberdade. Para a fartura da comida.

O assobio constante do falcão porém, foi lhe causando tristeza. A felicidade estava indo embora. O falcão era independente. Não precisava das regras do galinheiro. Nem também das regras dos homens.

O falcão assobiava de novo. Jalilau percebeu que sua alegria foi em troca da tristeza da ave. Era preciso libertá-la. O cativeiro causava a morte. Se não causava a morte, podia desnaturalizá-la.

Jalilal abriu o vitrosinho do banheiro pela última vez. Não tapou os ouvidos. O som da ave se tornou intolerável. Chega de pássaro! Chega de Pandion!

Desceu às escadas. Foi à cozinha. Pegou a arma que havia comprado na feira clandestina. Hoje resolveria a liberdade do triste cantor. Dirigiu-se ao galinheiro. Ele não viu a esposa que o acompanhava em passos tímidos.

Quando entendeu a intensão do marido, implorou para que não fizesse mal a ave.

Assim que Jalilal se aproximou do galinheiro deu um tiro seco e definitivo contra a jaula. O tiro quebrou o cadeado da porta. Abriu a portinha. O pássaro estava livre para voar. Á águia resistiu a sair. Ao olhar de novo, ouviu o intenso bater das asas.

O galinheiro estava vazio. A águia pesqueira tinha desaparecido como um morcego na noite sem lua. O silêncio voltou a dominar o quintal. Todos os dias ele ia ao galinheiro. A portinha estava sempre aberta. O último ocupante não voltou.

Decepcionado, acabou criando um ritual. Entrava no galinheiro. Fechava a portinha.

O cheiro que ainda exalava do falcão tinha desaparecido. É bem capaz que a esposa achasse que a depressão tinha voltado. Jalilal olhava para o céu dirigindo o carro. Parou o automóvel no sinal vermelho.

Antes de chegar ao trabalho, o habitual engarrafamento. Bateu a mão sobre o volante. Queria ser igual ao falcão. Ser independente.

 

Texto publicado originalmente no livro de antologia
da VI Mostra de Talentos do TCU – 2007. 

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.
Pandion. Narrativa de Bomani Flávio

óculos de sol

Óculos de sol.

A vitrine da loja repleta de variedade de óculos de sol. Havia muitos modelos bonitos e de última geração. Muita gente lá dentro experimentando, porém ele se recusando a entrar.

Tinha o dinheiro em mãos, mas estava com medo de entrar. Jamais tinha entrado em uma loja chique do centro. Jamais tinha comprado óculos de sol.

E tinha que ser de marca. Logo ele, que concebia que esses aparelhos eram para pessoas bonitas e ricas. Não para pobres de espírito.

Sempre quando comprava alguma coisa, ia sempre às feiras. Nunca às lojas chiques do Gilberto.

Neste lugar o pessoal é mais exigente, observa as pessoas, os seus modos. Óculos de sol não se destinam para qualquer um.

Mas naquele momento a implacável ideia fez esquecê-lo das fraquezas que julgava possuir. Neste momento o dinheiro falava mais alto.

Com o dinheiro no bolso, mesmo pouco, a mancosidade do rosto se transforma em benção.

Complicado caminho que seus olhos fisgaram! Também porque ficou namorando àqueles óculos há mais de seis meses?

Quem ganha salário-mínimo não tem condições de comprar óculos de sol — óculos de sol de marca. Agora ele tem, porque ajuntou dinheiro.

Ufa! Longos e sofríveis meses para se livrar de um tormento.

Olhou de um lado a outro da rua. Não queria que nenhum conhecido lhe visse entrando na loja. Nenhum colega do trabalho podia vê-lo entrando ali. Logo aquela loja, que ele sempre chamava de casa de ilusões.

Agora sabe muito bem que tinha que ser assim. Olhou de novo para as esquinas. Aliás, não parava de olhar para ambos os lados das esquinas.

Olhou de novo, e eis um colega do trabalho se aproximando. Caramba! Cidade tão grande e, de repente, tão pequena para alguém sem fama como ele. Tinha que entrar, e entrou.

Desajeitado, punha as mãos no bolso, tirava-as, colocava-as novamente. Como os olhos sem óculos nos fazem lembrar que as pessoas são diferentes! Não sabia, pois, o que fazer. Se chamava a moça, se assobiava, para dizer que um freguês chegou.

Se não foi notado é porque loja chique já sente o cheiro de pobre, e de longe. Não se pode gastar tempo com pobre!

Os vendedores sabem quando um cliente é pobre. Eles demoram a atender deixando o pobre coitado babando as vitrines por longo tempo.

A demora no atendimento foi recompensada por uma morena de pernas longas que não coube em seus olhos mentirosos de japonês.

Antes que ela lhe interrogasse, o nervosismo falou mais alto.

— Eu, eu, eu … quero óculos!

Ele sabia que a elegante vendedora, de tailleur vermelho, tinha ficado sem graça, talvez por seus gestos repetitivos de colocar as mãos no bolso e tirá-las novamente.

Porém a emoção falava bem mais alto do que o português atrapalhado que lhe saia naquele momento de euforia. Amealhou todo o ar que o pulmão podia e repetiu a frase, desta vez bem alto.

— Eu quero óculos, dona!

A vendedora de boca pequena acabou com a cara amarrada que o rosto ostentava por causa do atrapalhado freguês.

— De qual modelo, senhor? – disse-lhe sorrindo.

Apontou para um Ray-Ban, de desenho arredondado e arrojado, que o brilho do sol batia no espelho d’água de frente à loja que, por sua vez, refletia nos óculos causando uma mistura de mistério e sedução que só o afobado comprador tinha enxergado.

Ela pediu o rapaz para se sentar. Entregou-lhe o modelo com muito cuidado para experimentar de frente ao espelho dupla face sobre o balcão.

Que emoção segurar um verdadeiro óculos de sol! Logo um Ray-Ban!

O elogio da vendedora de que os óculos lhe pegaram bem, sem precisar experimentar outro modelo, foi o suficiente para iniciar a recuperação da sua baixa estima.

Não foi preciso perguntar o preço, pois já sabia com muita antecedência. Pagou. Sim, pagou à vista, deixando a vendedora um tanto desconfiada da procedência do dinheiro.

Fez gesto de que queria já guardar o produto, mas ela disse que ficaria mais bonito se ele saísse da loja usando o objeto. Óculos tão bonitos não podiam ficar escondidos.

É preciso vencer a timidez, pensou. Nada melhor do que vencer a timidez agora. A vendedora dos grandes olhos verdes champanhe tinha razão. Pôs a peça.

Nossa, que emoção! Me sinto um novo homem. Bonito homem. Adquiri a grandeza de um homem sem cara amarrada. Virei um canalha em um simples colocar de óculos.

Não foi preciso, ao sair da loja, olhar para os lados para averiguar se vinha algum conhecido, mas recebeu um leve tapa nas costas.

Quando se virou, o amigo que tinha visto bem de longe. E o amigo riu, riu, riu.
— Não estou achando graça nenhuma, Felipe.

O amigo continuava rindo.

— Você está rindo da minha desgraça ou da minha alegria?

— De nenhum dos dois. Não me interprete mal. Achou que eu não tivesse visto você entrando na loja, seu bobo, mas eu vi você. Aquele desgraçado estava me enganando, foi isso que pensei quando você entrou na ótica.

— Quando me disse que ia ao médico por que estava com dor de barriga, eu não acreditei.

— Se chegou bem ao trabalho, como poderia ficar mal de hora para outra? Por azar seu, eu vi você entrando na loja. E resolvi expiar até este exato momento. Valeu a pena.

E ri de você, de suas atrapalhadas, do seu nervosismo. A sorte desta vez te ajudou, colocando uma gata de pernas de outro mundo em seu caminho.

Você é realmente sortudo, escolheu bem os óculos e escolheu muito bem a vendedora.

O amigo falava, mas Braga parecia estar longe. Não acreditava que a peça dos seus sonhos estivesse decorando seu rosto. Foi um longo tempo para comprar um remédio que destruiria a dor que machucava cada peça da sua vértebra.

Caminharam até o trabalho, bem devagar. Só o amigo falando. Não importava. O presente momento diferenciava-se dos outros.

Agora, só queria ver o mundo sob outra perspectiva. O mundo dos óculos de sol. Totalmente diferente, tudo em preto e branco. Sensação nova, gostosa.

O restante do expediente não tirou os óculos, nem para ir ao banheiro, servindo de gozação para os amigos, que lhe chamavam de novo galã do pedaço.

Se estava bonito, a chacota não interessava. Pura inveja. Óculos de marca não são para qualquer bolso raso.

Passou os dezoito anos de sua vida se perguntando porque não podia usar óculos de sol. Óculos de sol de verdade. A felicidade é que, de seis anos para cá, conseguiu um emprego de empacotador em supermercado no Gilberto.

Decerto que não era dos bons, pois gostaria de ser mesmo era caixa que ganhava o dobro.

Conseguido o emprego, o próximo passo, antes de calças e sapatos, seria adquirir um verdadeiro modelo Ray-Ban.

Constatou algo interessante em Felipe, mesmo sendo amigos e vizinhos. Ele tornou-se à sua sombra.

Ofereceu-lhe inclusive carona para casa, de moto. Primeira carona. Nunca havia lhe dado carona, apesar de morar perto. E Felipe tinha óculos de sol. Mas não era de marca. Foi comprado no camelô por uma ninharia.

Apesar disso, sentiu em Felipe a leve inveja dos bobos, mas desapareceu imediatamente. Boa pessoa.

Não foram para casa de imediato. Tinha que haver comemoração na lanchonete. Afinal, mudança de vida merece respeito e louvor dos amigos.

— Sabe que você ficou galã com os óculos, Braga?

— Não vem com essa, Felipe.

— É sério, você ficou galã. Olhe para os lados, as meninas estão observando você. A sua pele escura e os óculos combinam. Pela primeira vez, eu estou sendo ofuscado por um rival.

— Eu não sou seu rival, sou seu amigo, embora você seja mais assediado pelas meninas.

— Desculpe, eu não quis dizer isso.
Braga sentiu vontade de contar algo. Contar algo que há muito silenciou, mas que de vez em quando lhe perturbava o coração.

— Não quer saber por que eu comprei os óculos? Alguém precisa saber, e você é essa pessoa, Felipe.

— Você não precisa me contar nada, sei onde você mora e trabalha, sei qual horas acorda e levanta. Contar o quê?

— Quer ou não quer ouvir?

— Tudo bem, eu quero.

— É ruim ser discriminado, Felipe. Não digo ser discriminado, sentir-se discriminado. Pertencer a um lugar, e não o pertencê ao mesmo tempo. Poder usufruir de alguma coisa, e por outro lado, não poder usufruir.

— Como no paraíso do Éden, todos tem direito ou não tem direito. Destrói a gente por dentro.

— Bem devagar, destrói. Por exemplo, desejar uma garota, e saber que um boa pinta chegou primeiro. Sabe por quê? Porque tinha óculos de sol.

— Tudo bem que o desgraçado fosse galã. Antes de tudo, usava óculos de sol. Pior ainda, de feira.
— Você está falando de mim, seu amigo.

— Desculpe, não é de você. Não leve por esses caminhos. Eu torço para que você compre um igual ao meu.

— Continue então.

— Como estava dizendo, descobri que garotas gostam de caras que usam óculos de sol. Mulher gosta disso, de caras que usam óculos de sol.

— De caras que lhe transmitam maldade no rosto. De caras que lhes transmitam que é macho. Não só por dentro, mas por fora, também.

— Como são as coisas, Braga. Sempre considerei você um cara tímido. De casa para o trabalho, e do trabalho para casa. Não acreditava que você adorava óculos de sol. Você deu um grande passo, cara.
— Um grande passo ou não, a verdade é que eu perdi uma garota para um canalha. Há um ano isto me aconteceu. Aconteceu com uma linda e desbocada loira oxigenada do colégio, quando eu terminava o último bimestre do secundário.

— Havia tempo que eu mandava vários bilhetes para ela, através de minha melhor amiga, que infelizmente trocava as minhas mensagens. A falsa amiga reescrevia-os, dizendo que havia um admirador secreto.

— Com certeza que a descrição da paquera que a Teresa fazia não se referia a mim, como eu fiquei sabendo depois, mas ao Tom, a quem ela ajudava, às escondidas. Todos os dias eu mandava bilhete de apaixonado. Todos os dias a Teresa rescrevia o bilhete.

— O último bilhete — ah, o último bilhete — que informava a data, o local e o horário do nosso primeiro encontro, não chegou às mãos da mulher, porque o admirador que usava óculos de sol tinha chegado primeiro.

— Maldito dia que me fez crescer uma raiva contra todos que não usam óculos de sol. Antes de mim, o filho-da-mãe chegou. A menina ficou fascinada pelo canalha.

— O cara não tirava de jeito nenhum os malditos óculos, como eu mesmo averiguei, de longe, vendo os dois abraçados. Para a minha infelicidade, ele sabia dos segredos da sedução. As meninas gostam. Admiram.

— E você aceitou a derrota?

Braga pensou, e disse-lhe:

— Eu não aceitei a derrota, se é isto que quer saber. Resolvi me vingar comprando óculos de sol de verdade.
— E agora, vai para o ringue?

— Isto é que eu não sei, Felipe. Vale lutar tanto por um amor baseado em óculos de sol?

— Olha cara, a gente está sempre ganhando e perdendo. Ora a vitória está em nossas mãos, ora a tijolo também está em nossas mãos. Quero dizer que o mundo tem muitas garotas.

— Cada uma mais linda que outra, ou mais feia que outra, sei lá. Em breve, você encontrará uma outra, e verá que o mundo é um caminho de lições. A gente anda, anda, e a gente acaba caindo em nova lição. Você vai ver.

— Está certo, não tiro a sua razão, Felipe.
Neste momento a atendente chegou. Pediram coca cola.
— Você não imagina como foi difícil comprar os óculos, Felipe.

— Você é doido, realmente comprou óculos caros.
— Não falo do preço. Falo das amarras que existe dentro da gente, de barreiras que nenhum Raio X consegue detectar. Nenhum aparelho percebe o que se passa por trás dos olhos da gente.

Se percebesse o mundo teria menos problemas, pois os problemas das pessoas estão atrás da cor dos seus olhos. Se as pessoas fossem cegas, a violência seria bem menor e não caberia nos jornais. As dificuldades das pessoas são os olhos.

— Entendo.

— Não, não me entende. Não imagina como é difícil ser chamado de besta, de ser passado para trás por um miserável que tem óculos de sol. Assim, você não sabe, Felipe.

— Esforçar-se para entender é uma coisa. Sentir a dor é maior do que a gente; é outro sofrimento que ninguém sabe, a não ser a pobre da vítima.

— Se torna pior quando isto é uma rede. Rede de proporção gigantesca. Isto é que é pior. Vai para um lugar, lá está o problema. Foge para outro lugar, lá também está a rede. A utopia está nas pessoas de corações fingidos.

— Igualdade? Palavra inventada pelos galãs para dizer que somos todos iguais perante as mulheres. No fundo, no fundo, eles querem ser os donos de tudo. Isto, Felipe, você sabe muito bem. Mais do que eu, você sabe.

— E tem mais. O que me preocupa é a validade dos óculos de sol. Até quando vou poder olhar o mundo, o mundo dos óculos de sol, mundo preto e branco, se tudo que a gente vê, sem objeto algum, é colorido?

 

O conto ÓCULOS DE SOL foi publicado originalmente no portal Usina de Letras em 09 de abril de 2003.

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.

Óculos de sol. Narrativa do poeta Bomani Flávio.