Arquivo para categoria: Poema sobre cicatrizes do tempo.

Rugas chegaram com delicadeza em meu rosto.

Rugas chegaram com delicadeza em meu rosto.

Sinais com vincos profundos.

Mas vieram tão de mansinho,

Ao longo dos anos.

Tanta delicadeza enganaram meus olhos,

Tão exigentes com a alimentação e o bem-estar.

 

Mas por que somente agora fui me dar conta?

Oitenta aniversários com parabéns e bolos!

Como esta máscara tão cheia de vincos,

De vincos tão profundos,

Instalou-se em meu rosto sem ao menos me avisar?

 

Apalpo meu rosto novamente.

Os vincos estão todos lá.

Acordo no dia seguinte e continuam lá.

 

Porém se propagam sobre o pescoço, as mãos e os braços.

Tudo parece tão diferente e impregnado!

Onde está minha pele de pêssego,

Que eu não reconheço mais?

Quem foi o pintor que,

Na calada da noite ou sob o intenso sol,

Foi redesenhando meu lindo rosto?

Resultado de um trabalho de artesão,

Que meu ser procura entender.

 

Toco novamente com delicadeza a pele do meu rosto.

Onde está minha pele de pêssego,

Que eu não reconheço mais?

 

Pois o que sinto são vincos,

Profundos vincos,

Que vieram para ficar.

 

Minha pele de pêssego só pode estar no casulo.

Naquele casulo preso na goiabeira,

Que vejo por meio da janela da cozinha.

 

Onde há casulo, há troca do que era pelo que está chegando.

Fui permitindo como uma presa diante do predador.

Mesmo que eu contratasse um exército,

Não tinha como vencer um animal que se prolifera.

Talvez a culpa seja dos aniversários.

Quanto mais aniversários,

Mais licença fui concedendo.

 

Mas não tem como resistir a força de um pintor,

Cujo rosto ninguém vê.

Ele pega o lápis, sem precisar de prancha,

E vai desenhando linhas e mais linhas.

 

Mais vou olhar para a goiabeira do quintal.

Quem sabe olhando para os casulos,

Eu descubro o rosto do pintor.

 

Brasília, DF, em 23 de outubro de 2018.

Rugas chegaram com delicadeza em meu rosto. Poema de Bomani Flávio.

cavalo negro

Um cavalo negro saiu da minha orelha.

Um imenso cavalo negro libertou-se da minha orelha,

Enquanto a terra dos meus olhos girava.

Durante o sol da lua,

Sofri, e como sofri!

 

Dor de parto que ninguém presenciou.

Mas quem iria acreditar?

Meses, anos, por quanto tempo suportei, não sei.

A dor sobrenatural, às vezes, tem começo sem término,

Quando o medo vem de um equino.

 

Minha orelha direita brotou um cavalo,

Lindo cavalo negro de raça.

Possível criação da cera do meu ouvido.

Do cerume, e que tanto cerume, pois eu não limpava!

 

Estranha escultura oriunda de uma nojenta cera,

Fabricada pelo extraordinário magma,

Que tinha lá dentro do meu querido ser.

 

Além de lindo, bicho assustador.

Olhos que eu não via.

Animal grande como um elefante.

 

Lá dentro do ser, porém, quanto aperto!

Quanta sensação de aperto para um lugar.

Tão grande como uma concha de colher.

Aquela de sopinha!

Verdade muito maior do que a denúncia de delírio,

Extremo delírio,

Da mente cansada de um pobre trabalhador,

Que pega ônibus lotado todos os dias.

 

Trajeto longo como um dia,

Para uma vida com pouca ou nenhuma ousadia.

Quantas conversas comigo mesmo,

Inclusive nesse itinerário!

E às vezes eu ouvia:

Cara estranho.

Serzinho esquizofrênico!

 

Cada modalidade de doido que surge!

Eu dormia, acordava, fechava os olhos.

Para os passageiros um louco,

Para o cavalo negro um hospedeiro,

Que seria o derradeiro.

Derradeiro com abrigo tão pequeno,

Para animal tão bruto.

Bem cuidado, pela aparência, em refinados haras.

 

Contudo, por que quis se abrigar em lugar que nada tem de aras?

Um imenso cavalo negro saiu da minha orelha.

Lindo e assustador animal,

Que saiu do meu ouvido,

Sensível ouvido de um trabalhador.

 

Como essa espécie animal entrou no meu ouvido,

Se eu me cuido o tempo todo?

Talvez tenha sido cria dos sonhos.

Desejos de uma casa boa,

Possuir carro próprio.

Dar condições dignas à família.

 

Como o bicho cresceu, não sei.

Mas eu sei que saiu.

O animal rosnou e sumiu misteriosamente,

Quem sabe seduzido por um outro abrigo,

Mais atraente do que o meu.

 

Foi-se e uma paz de espírito, lentamente, invadiu meu ser.

A habitual surdez foi embora.

Inexplicavelmente sons voltei a escutar.

Conversas comigo mesmo parei de falar.

 

Os habituais chatos do busão seguiram a longa viagem,

Sem um esquizofrênico a perturbar.

Sob o intenso sol da lua,

Um imenso cavalo negro saiu da minha orelha.

Lindo equino de raça,

Produzido pelo cerume do meu ouvido.

 

Foi-se o animal para muito longe.

Bem distante da minha orelha.

Eu nasci, cresci e envelhecendo estou,

Mas sei que tantas coisas ainda vão nascer dentro de mim.

Às vezes bicho sem pé nem cabeça.

Será que estarei pronto,

Já que não há uma escola de preparação?

 

Brasília, DF, Brasil, em 03 de agosto de 2018.

Cavalo negro saiu da minha orelha. Poema de Bomani Flávio.