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álbum de família

Quem está ausente no álbum de família?

Quem está ausente no álbum de família?

Tanto tempo que não vejo.

Meses, anos?

Na vida moderna tão cheia de novidades,

Já não se usa o álbum de família.

O álbum de família hoje está em todos os lugares,

Menos na sala de visita.

Por que tive que olhar para o álbum,

Tão esquecido na sala de visita?

 

Álbum é coisa minúscula.

O que importa na vida é coisa graúda.

Por que o álbum de família,

Que vejo na estante esquecida,

Virou uma coisa bem graúda,

Para olhos tão seletivos?

 

Porque de lá saiu uma rã,

Tão pequena que não canso de lembrar.

Como a rã saiu de um álbum,

Agora não sei onde está.

 

Quando uma rã sai de um álbum,

Está, na verdade, resgatando o passado.

Revirar o passado tem seu valor,

Se for para reparar o bem.

 

Por que lembrar o passado,

Se o presente está indo tão bem?

Remoer o passado vira remédio,

Se o ser quer mostrar alguém.

No álbum de família que folheio,

As inesquecíveis fotos de meus pais.

As crianças brincando no quintal.

Eu, porém, na barriga de minha mãe.

 

Eu estava lá,

Sob a pele charmosa de minha mãe.

Contudo, cadê os outros personagens,

Esconderam-se por causa da falta de coragem?

 

Trata-se dos trabalhadores invisíveis,

Que criaram o ser,

Que vê estas fotos.

Onde está o espermatozoide vencedor da corrida?

Onde está o óvulo fecundado,

Que seguiu caminho triunfal para o útero de minha mãe?

 

O álbum não vai mostrar a invisibilidade.

Os seres invisíveis originam as visíveis.

Por isso que eles estavam lá,

Escondidos sob a pele de minha mãe.

 

Estavam trabalhando para esculpir o ser.

Mas eram para estar no álbum de família,

Que teria o ser do passado e o ser do presente.

Quem iria querer o espermatozoide?

Quem gostaria de ver o óvulo?

 

Todos nascem do assombroso.

Eu, meus pais, meus irmãos,

As mulheres, os homens, as crianças,

Os fisiculturistas, os modelos,

Presidentes, rainhas e princesas.

Todos nascem do assombroso,

Para dirigir o mundo.

Se nada não nascer do assombroso,

Não será deste mundo.

 

Brasília, DF, Brasil, em 22 de agosto de 2018.

Quem está ausente no álbum de família. Poema de Bomani Flávio.

entardecer
Viração do dia.

É na viração do dia

Que costumo ir para o balanço

Da minha desgastada rede,

Onde procuro ansiosamente resgatar o dia

Que se foi.

 

Balanceio-me suavemente para viajar no tempo.

Ambiente que conheço, porém perdido,

Por causa das rígidas leis da natureza.

 

Assim, desligo as luzes da varanda

Para as trevas mais cedo chegar.

Porém, de tanto balançar, após algum tempo,

Constato a esperada realidade:

Não consegui recuperar o dia que se foi.

O esforço foi em vão.

 

Não devo, não devo chorar.

A frustração não vai ajudar.

A impotência ganho não me dará.

 

A verdade é que não se recupera o tempo perdido com choro,

Nem se acha o tempo que se foi com o balançar de uma rede.

 

Posso balançar quantas vezes quiser,

Mas a viração do dia em nada recuperará o tempo que se foi.

Percebo, porém, que meu estranho ritual diário tem conquistado minha vira-lata,

Que late, com expectativa, quando estaciono o carro na garagem,

À espera da hora da rede.

 

O tempo com minha cadelinha,

Que gosta de ficar embaixo da rede logo que balanceio,

Recupera, de alguma forma, o instante de tempo que se foi.

 

Mas vejo também,

Escondida sobre o vazio vaso de planta,

Minha galinha pretinha,

Ansiosa para chocar.

Fica ali dias.

Testemunha silenciosa,

Do balançar da rede.

 

Todavia, o tempo perdido, que vivenciei vinte e quatro horas,

Ao longo do dia que se foi,

Jamais recuperarei.

Nunca conseguiria dobrar as indobráveis leis físicas,

Em qualquer passagem de tempo.

 

Mas é na viração do dia que estão os mistérios da vida.

Fronteira do dia que se foi e da noite que chega.

Instante que encanta e cega, que é o próprio tempo que se foi.

 

Brasília, 06 de outubro de 2017.

Viração do dia. Poema de‎ Bomani Flávio.

oceano
O oceano.

Há um oceano,

Entre um dia e outro,

Do tamanho do Atlântico,

Que nos impede de voltar

Ao dia anterior.

 

Quanto mais se passam os dias,

Quanto mais cresce sua imensidão.

Não adianta chorar,

Nem lamentar,

Pelo dia anterior.

 

Resta olhar para frente

Como aquele avião que se vai.

Para travessia sem fim.

Ilusão que satisfaz e engana.

 

Mas o dia posterior também é de assustar.

Pelos menos há rios e lagoas.

Talvez menores,

Para avançar.

Se não se pode voltar,

Medo não se pode ter para avançar.

 

Vastidão como esse,

Tão grande assim,

Ninguém esquece.

Nasce com ele,

E morre assim.

 

Talvez algum dia a geografia mude.

Ele de vez apareça.

Sempre virá do dia anterior,

Onde sempre foi seu lugar.

 

Há um oceano,

Entre um dia e outro.

Cresce, porém, dia a dia,

Para assustar você.

 

Oceano indomável.

Embora tão grande,

Quase ninguém vê,

Nem percebe.

 

Quando se nota,

Sobram as rugas.

Terríveis rugas do envelhecer.

Tatuagens de um dia que se foi.

Mistério que ninguém explica.

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.

 Oceano. Poema de Bomani Flávio.