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entardecer
Viração do dia.

É na viração do dia

Que costumo ir para o balanço

Da minha desgastada rede,

Onde procuro ansiosamente resgatar o dia

Que se foi.

 

Balanceio-me suavemente para viajar no tempo.

Ambiente que conheço, porém perdido,

Por causa das rígidas leis da natureza.

 

Assim, desligo as luzes da varanda

Para as trevas mais cedo chegar.

Porém, de tanto balançar, após algum tempo,

Constato a esperada realidade:

Não consegui recuperar o dia que se foi.

O esforço foi em vão.

 

Não devo, não devo chorar.

A frustração não vai ajudar.

A impotência ganho não me dará.

 

A verdade é que não se recupera o tempo perdido com choro,

Nem se acha o tempo que se foi com o balançar de uma rede.

 

Posso balançar quantas vezes quiser,

Mas a viração do dia em nada recuperará o tempo que se foi.

Percebo, porém, que meu estranho ritual diário tem conquistado minha vira-lata,

Que late, com expectativa, quando estaciono o carro na garagem,

À espera da hora da rede.

 

O tempo com minha cadelinha,

Que gosta de ficar embaixo da rede logo que balanceio,

Recupera, de alguma forma, o instante de tempo que se foi.

 

Mas vejo também,

Escondida sobre o vazio vaso de planta,

Minha galinha pretinha,

Ansiosa para chocar.

Fica ali dias.

Testemunha silenciosa,

Do balançar da rede.

 

Todavia, o tempo perdido, que vivenciei vinte e quatro horas,

Ao longo do dia que se foi,

Jamais recuperarei.

Nunca conseguiria dobrar as indobráveis leis físicas,

Em qualquer passagem de tempo.

 

Mas é na viração do dia que estão os mistérios da vida.

Fronteira do dia que se foi e da noite que chega.

Instante que encanta e cega, que é o próprio tempo que se foi.

 

Brasília, 06 de outubro de 2017.

Viração do dia. Poema de‎ Bomani Flávio.

Ano novo.

O ano novo começou em outubro,

Mas dezembro surge se abrindo para meus olhos sedentos.

Vislumbro aquelas profecias para o ano-novo.

Renovação de promessas não cumpridas.

Muitas festas e comilanças

E fogos de artifícios.

 

Antes assistia com afinco o réveillon.
Mas agora dezembro vai emergindo como o circo que abre o ano-novo.

 

É que não se pode esquecer dos cinco dias antes.

Até mesmo do que aconteceu ou podia ter acontecido há três meses ou mais.

 

Banquetear será bom se todos derem as mãos desde os dias de ontem.

Os refugiados com os europeus.

Os latinos com os do Norte.

Os judeus com os árabes.

Não se esquecendo dos asiáticos com os chineses.

Banquete não tem data fixa.

Todos os dias seriam celebração!

 

Brasília, 6 de outubro de 2017 às 18:50

‎Ano novo. Poema de Bomani Flávio.

destino
Meu destino.

Bem dentro da gaveta do escritório está meu destino.

Pela primeira vez pude vê-lo assim tão perto.

Em carne e osso.

Li coisas absurdas.

Demorei a acreditar.

Para ser contra eu mesmo.

Assim eu chego lá.

 

Não foi surpresa o estranho modo de se expressar.

Tomou a forma de papel escrito em péssimo português.

Que coisa, joga sujo.

Pensava, porém, que jogava bem.

 

Engana-se quem ache que seja alguém do outro mundo.

Ele é simplesmente a outra cara da moeda de um real em minhas mãos.

Mas lá, naquelas letras estranhas,

Pescadas de um baixo mundo que ninguém sabe onde fica.

Estou hipnotizado.

É o seu poder mortífero,

Pois a ovelhinha me abalou como um tremor de terra.

Só que, sob o meu poder, porém está.

 

Gritar.

É isso que eu devia fazer.

Gritar bem alto.

Olha pessoal, o papel digitado é meu refém.

Coisa rara para qualquer um.

Posso fazer o que quiser com a vítima.

Molhar, rasgar.

Qualquer coisa, menos deixar fugir.

 

Lembro, porém, que o papel é sujo.

Vai me denunciar.

O destino está sujo.

A gaveta está suja.

A poucos centímetros da mão que não quer jogar a peste fora

E perto também dos olhos!

É melhor eu rasgar o papel.

 

Mas desisto.

O papel é meu retrato.

Traduzido estranhamente para o papel.

 

O destino estava nas minhas entranhas.

A lei da árvore da ciência do bem e do mal.

Germinando como toda semente de uma árvore.

 

Brasília, DF, em dezembro de 2002.

Meu destino. Poema de Bomani Flávio.

flor vermelha
A flor vermelha.

Muita chuva além da janela.

Como não lembrar?

Não tem como esquecer!

Lembrar-me da recente morte da flor vermelha,

Que resgatei do chão,

No caminho da previsível corrida,

De ontem de manhã.

 

Flor pisada!

Rosa encharcada!

Tanta água para minúscula criatura,

Abandonada em tão breve vida!

 

Paixão, amor, desejo e destruição.

Ingredientes regados a vinho tinto por uma flor vermelha,

Arrancada de sua próspera terra,

Para testemunhar o esperado possível,

Que virou o impossível,

Como a chegada de um tremor.

 

Pobre flor!

Encheu-se de uma felicidade enganosa,

Mas morreu tão desfigurada,

No trincado copo esquecido da minha cozinha!

 

Olho novamente a intensa chuva pela janela,

Mas não esqueço da pobre rosa vermelha.

Enterrada, agora a pouco, no encharcado lixo orgânico,

Que havia sobre a minha pia.

 

Preciso voltar a correr

Por amor, paixão e desejo,

Mas sem imprevisível destruição.

 

Testemunha já não quero ser.

Sentença que acabo de receber,

Logo após desfazer-me do outro lixo.

Daquele trincado copo da cozinha.

 

Resta-me senão ignorar as chuvas que me paralisam

Para a corrida voltar.

Meu coração certamente irá bater,

Caso outra rosa achar

E dela, com falsa esperança, cuidar

De irrecuperável dor que não fiz.

 

Brasília, 5 de outubro de 2017 às 20:54

A flor vermelha. Poema de Bomani Flávio.

oceano
O oceano.

Há um oceano,

Entre um dia e outro,

Do tamanho do Atlântico,

Que nos impede de voltar

Ao dia anterior.

 

Quanto mais se passam os dias,

Quanto mais cresce sua imensidão.

Não adianta chorar,

Nem lamentar,

Pelo dia anterior.

 

Resta olhar para frente

Como aquele avião que se vai.

Para travessia sem fim.

Ilusão que satisfaz e engana.

 

Mas o dia posterior também é de assustar.

Pelos menos há rios e lagoas.

Talvez menores,

Para avançar.

Se não se pode voltar,

Medo não se pode ter para avançar.

 

Vastidão como esse,

Tão grande assim,

Ninguém esquece.

Nasce com ele,

E morre assim.

 

Talvez algum dia a geografia mude.

Ele de vez apareça.

Sempre virá do dia anterior,

Onde sempre foi seu lugar.

 

Há um oceano,

Entre um dia e outro.

Cresce, porém, dia a dia,

Para assustar você.

 

Oceano indomável.

Embora tão grande,

Quase ninguém vê,

Nem percebe.

 

Quando se nota,

Sobram as rugas.

Terríveis rugas do envelhecer.

Tatuagens de um dia que se foi.

Mistério que ninguém explica.

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.

 Oceano. Poema de Bomani Flávio.

seca

Estiagem de chuva no quintal.

Haverá dia em que terá tristeza,

Imensa Tristeza,

Pela intensa chuva que passou,

Mas não deixou cair uma gota d´água sobre seu quintal.

 

Ficou tão estarrecido,

Talvez até doente,

Que a estiagem de chuva no quintal assombrou você.

 

Seara que dói por algum tempo.

Às vezes por longo tempo.

Dor sobremaneira,

Para quem ainda não experimentou longo tempo de estiagem.

 

Quando for assim,

Não tenha inveja da água,

Que caiu sobre o quintal do vizinho,

Mesmo que tenha sido abundante.

 

Pois, em época de estiagem de chuva,

De extrema estiagem,

Nada melhor do que apreciar o céu estrelado sem fim.

De preferência, deitado em uma rede,

Para refletir sobre os solavancos da vida,

Os quais não terá resposta pronta e rápida.

 

Tudo parece sem fim neste mundo!

Inclusive a estiagem!

Inclusive a resposta!

 

São as medidas incertas que servem para medir

O que ainda não foi medido,

Pela brevidade da vida sem fim.

 

Mas um dia a estiagem vai passar

E a água, se não cair em seu quintal nas próximas estações,

Pelo menos tenha fé que caia ao menos uma gota d’água,

Que pode, surpreendentemente, revitalizar o seco quintal.

Principalmente porque chuva e estiagem são paisagens,

Que, ao longo da vida, você enfrentará.

 

Pois o quintal é o seu quintal.

Em época de estiagem,

De extrema estiagem,

Os olhos devem sempre mirar o céu,

Na esperança de mudança de paisagem.

 

Brasília, 3 de outubro de 2017 às 11:51

Estiagem de chuva no quintal. Poema de Bomani Flávio.

sindrome da solidão

Síndrome da solidão.

Que síndrome de solidão é essa,

Que não cessa?

Pois querer ficar sozinho,

Estocado, enjaulado,

É cumprir a regra do solitário, de mansinho.

 

Talvez seja a falta de conversa comigo

Que me expõe a esse perigo.

 

Mas eu preciso falar comigo.

Pode ser neste sábado.

Pode ser em outro dia.

De um jeito ou de outro,

Eu preciso falar comigo.

 

Mesmo me tendo o tempo todo,

Não consigo falar comigo.

Há tempos que não consigo falar comigo.

 

Logo agora,

Que o descanso do trabalho

Afasta o labor diário,

Não consigo falar comigo.

Indago a toda hora porque isso acontece

E principalmente nas horas vagas.

E a resposta pode estar no muro.

Na inscrição perdida na pichação de uma escola classe:

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Pichação que me remete à Trindade.

 

A santíssima trindade falava consigo,.

Concordava-se, pois a vontade era a criação.

Não a expropriação.

 

Tudo em nome do Pai,

Do Filho

E do Espírito Santo.

 

As inquietações do meu ser, porém, impedem de falar comigo.

Não têm a unanimidade de Cristo,

Do Pai,

Nem do Espírito Santo.

 

Sou três pessoas em um só corpo.

Será que sou mais?

Cada uma, porem, não se sacrifica em prol da outra.

Cada uma usurpando do direito de se impor.

 

Assim jamais serei um.

Poderei ser tudo,

Menos a Trindade.

Quer dizer, a trindade sem unidade.

Coração à deriva de outros corações.

Bem além de três.

 

Poema publicado originalmente no livro
“Coletânea de Textos dos Escritores do Tribunal de Contas da União”
na V Mostra de Talentos do TCU em 2006.

 

Brasília, DF, em 3 de outubro de 2017.

Síndrome da Solidão. Poema de Bomani Flavio.