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kardashian

Perguntem a Kim Kardashian sobre a vida do casal.

Após levar casal surdo-mudo de volta para casa,
a volta para a minha é surpreendida com espetacular lua
no início da noite de sábado.
Claridade que  refletia nas pedras do
quintal de casa. Brasília, 19/01/2018.

 

Perguntem a Kim Kardashian,

Beleza que encanta as torres invisíveis do dia a dia.

Morena que encanta sedutoramente de longe,

Mas como fogo encanta muito mais de perto.

 

Porém, se estiverem acanhados,

Perguntem ao sol.

Perguntem também a lua.

Quem surgiu primeiro:

O sol ou a lua?

 

Assim como os limites exatos das fronteiras do universo,

A indagação pouco importa na vida do casal.

Mas, se for importante,

Na crise, na vida de um casal,

O sol nasceu primeiro.

Os astros foram maravilhosamente se mexendo,

Para incrivelmente surgir a lua.

 

Se ainda não perguntaram a Kim Kardashian sobre o sol e a lua,

Aproveitem para falar da vida do casal.

Se tirarem o sol do quintal,

A luz da lua será suficiente para iluminar a vida do casal?

 

Outra resposta veio de uma noite para outras noites.

Para viver juntos,

Deve haver sempre o sol,

Para iluminar o dia,

E não esquecer da lua,

Para iluminar a noite.

 

Mas se vier o inverno,

Talvez junto com aquela intensa neve de tremer a pele,

Lutem para não esconder o sol nem a lua.

E se esconder, que outra luz poderia iluminar a vida do casal?

 

Brasília, 19 de janeiro de 2019.

Perguntem a Kim Kardashian sobre a vida de casal. Poema de Bomani Flávio.

céu estrelado

Lições de uma noite escura de céu estrelado.

Noite escura de céu estrelado.

De tanto me encantar,

Vai, finalmente, mostrar o que tem além das estrelas?

Tão próximas umas das outras.

Uma, duas, três, vinte e sete.

A contagem logo me cansa,

Por causa da colossal fotografia celeste.

 

São milhares de milhares,

Que não consigo sequer contar.

Mais uma vez o fascínio encanta meus olhos,

Que se convencem de tanta beleza,

Mas também de intermináveis perguntas.

 

O que há além das estrelas?

Ou antes das estrelas?

Poderia ser o multiverso?

Por que as estrelas parecem tão próximas umas das outras?

Talvez seja miragem dos meus olhos.

 

Aliás, por que precisa-se de tantas estrelas?

Não bastava uma ou duas?

Uma já me impressiona.

Duas ou mais me fascinam.

Milhares estarrecem meu ser.

 

Noite escura de céu estrelado.

Vejo extrema beleza no mundo de cima.

Complexidade que não cabe em meus olhos.

Porém o mundo de baixo,

Onde vivo,

Parece mais complexo do que o de cima.

 

O mundo de baixo tem concentração de renda.

Pouca gente para muita grana.

Muita gente para pouco dinheiro.

Fama sem conteúdo.

Dívida bancária que nunca acaba.

Riquezas e mais riquezas para ricos.

Tudo em nome da vida eterna,

Que aqui embaixo não tem.

Eterna só no mundo de cima.

 

Noite escura de céu estrelado.

Você não é alguém,

Mas é um teto,

Isto é, um complicado teto.

Bem mais do que um complicado teto,

Para minhas lamentações,

Provocadas pelo mundo de baixo.

 

Olhe para o mundo de baixo.

Verá intermináveis estrelas.

Tão numerosas quanto as de cima.

Impossíveis de se contar.

Estrelas que provocam milhares de lamentações,

Neste primeiro de maio.

 

Brasília, DF, Brasil, em 01 de maio de 2018.

Lições de uma noite escura de céu estrelado. Poema de ‎Bomani Flávio.

aguia

Pandion.

Ele havia vestido a samba-canção para dormir quando ouviu um assobio estrondoso naquela noite em que a lua havia sumido por causa das baixas nuvens da primavera que virou outono.

Ansiosamente desligou a luz do abajur e espiou pelo vitrozinho a paisagem escura. Com a janela aberta, o som inquietava mais ainda os ouvidos.

De onde teria vindo a sinfonia do demônio que apareceu para atrapalhar o sono tão debilitado pelo atípico clima seco e calor de mais de trinta graus? Fechou o vitrozinho.

O misterioso som era mais impetuoso que os estranhos graves e agudos produzidos pela cigarra, inseto da família cicadoidea, que se espalha rapidamente com a chegada da primavera.

Um medo se apossou. Olhou para esposa que roncava suavemente e ficou surpreso porque ainda não tinha acordado.

Também não teve vontade de acordá-la uma vez que as aulas matutinas com as crianças da primeira série realmente tiravam o sono da lindinha de cabelos grandes e morenos.

Finalmente achou melhor acordá-la. Precisava compartilhar a funesta notícia com a querida.

Quando ia tocá-la, a orquestra solitária acabou o canto bizarro repentinamente. Será que o bicho morreu de tanto assobiar? A noite voltou a ficar calma como de costume.

Mesmo assim o medo não passou. O copo que a esposa geralmente levava com água para o quarto estava sem nenhuma gota de água.

Fez menção de jogá-lo contra a parede. Conteve-se. Precisava tomar água para se restabelecer do susto. O ouvido escutou bem a enigmática melodia.

Quando chegou na cozinha, abriu a geladeira. Bebeu todo o litro de água gelada. A água, contudo, não conteve a tremedeira. A sensação de pavor não se dissipou.

Olhou para o relógio de parede, que anunciava oito horas da noite. A noite mal havia chegado e recebia como presente o som de outras terras. Talvez o som do diabo.

A sua mãe tinha razão. A ideia de morar em região semiurbana era perigosa. Lembrou da cachorrinha Fifi cujo latido ainda não ouviu.

Nestas horas ela estaria arranhando a porta de madeira da cozinha como sinal de fome ou de companhia. Pensando bem o silêncio da cachorra talvez venha do medo do extraordinário som.

A explicação não convenceu porque a cachorrinha era valente. Ela enfrentaria qualquer animal. O silêncio da sentinela da casa prenunciava desgraça.

De qualquer forma, ficou até mais tarde assistindo televisão. Reportagem de jornal mostrava muitas cidades dos Estados Unidos sob neve. Surpresa lá e surpresa aqui, em que a escuridão, crescente, se contrastava com o branco mostrado pela televisão.

Não resistiu ao sono. Dormiu ali mesmo na sala.

Sob pesadelo, acordou mais tarde. Ouvia os mesmos sons estridentes de horas atrás. Desta vez o som era tão incomodo quanto milhares de cigarras juntas. Atravessava as inúteis portas e janelas atingindo os tímpanos do ouvido.

Escondia as orelhas entre as almofadas, mas a atitude se tornara insuficiente.

O barulho parava por momentos e retomava com mais força. Não sobrava mais paciência.

Desligou a televisão e foi à cozinha. Precisava achar a lanterna. Estava decidido a descobrir o ator do inigualável som.

E se for realmente um bicho, um bicho grande como um homem, teria forças para lutar? Se fosse em época chuvosa, certamente que teria, pois o corpo reagia bem ao clima úmido e ensolarado.

Ganharia energia e ficaria mais esperto até mesmo para o sexo abundante com a esposa. Não seria um homem de trinta anos capenga de disposição. Olhou para o relógio novamente.

Duas horas da manhã! Pôs as mãos de novo sobre os ouvidos.

Os sons, contudo, foram enfraquecendo, até sumirem.

Voltou ao quarto. Observou a esposa que continuava dormindo e teve pena de acordá-la.

Daqui a três horas a pequena vai levantar e sair às pressas para o trabalho. Resolveu não acordá-la. Vestiu o roupão preto de banho. Faltava, porém, algo. Faltava um facão que estava na salinha de ferramentas, próxima da cozinha.

Após pegar a peça, achava-se pronto para vasculhar o quintal.

Com certeza, pensou, o movimento que fez de dentro reprimiu o sumiço dos sons. Não desistiu, no entanto, da ideia de ir ao quintal. O quintal era seu mundo predileto, pois gostava de cuidar das plantas e da horta. Tinha três mil metros quadrados de área.

Assim que abriu a porta de visitas, sentiu um jato de calor sobre o rosto pálido. A temperatura quente realmente enfraquecia sua energia. Nem para carregar o facão tinha forças. O facão pesava no braço. O ideal seria uma arma.

As folhas das árvores não balançavam. Meio trêmulo começou a revistar. Foi ao portão da casa onde tudo parecia normal. Caminhou paralelo ao muro e nada de anormalidade.

Visitou o galinheiro e, na entrada, se assustou com algo terrível. A galinha que havia comprado na feira estava entrelaçada. Esqueceu de fechar a portinha! O terror continuou.

A cadelinha Fifi também estava morta! A cabeça tinha sido decepada.

O monstro havia comido o restante do corpo. Os olhos estavam tão dilacerados que parecia que haviam visto um ser apavorante. Não havia sangue por perto. O monstro estava com muita fome.

Novamente o medo se apossou. O devorador comia em silêncio! Quem estava entrando em seu mundo? Aqui sempre foi seguro. Segurou bem o facão na mão esquerda. O corpo estremecia.

O assassino estava por perto. Tinha uma coisa a fazer. Correr rápido para dentro da casa e chamar a polícia. E correu, mas tropeçou em uma pedra.

Aliás, tinha esquecido daquela merda que servia para contemplar o galinheiro quando abrigava a galinha. A luz da lanterna se apagou com a pancada. Quando caiu, o enigmático barulho reapareceu com intensidade de causar surdez.

A lua que havia sumido reapareceu com um brilho muito singular. As nuvens opressoras se dissiparam. Tudo havia se tornado claro. Podia-se distinguir qualquer vulto em poucos metros. Ouvia-se barulho de bater de asas muito forte. Pensou nas asas do demônio.

À noite o demônio possui asas. Percebeu que uma ave sobrevoava a sua cabeça. Pouco depois disso, finalmente seus olhos detectaram o ladrão do sono e dos animais. Os olhos detectaram uma ave muito grande e assustadora.

Com o contraste da luz da lua, o bicho parecia fantasmagórico.

Que ave era aquela? O barulho que ecoava era de atemorizar qualquer ouvido. Protegendo-se com asa mão, reunia forças contra as garras do mal lutava contra o maior pássaro que viu.

A luz da lanterna, antes de se apagar, possivelmente acabou cegando momentaneamente o pássaro que bateu com violência contra o poste de vôlei. A ave caiu no chão. O impacto levou-o a acreditar que a intrusa havia morrido.

O som estridente parou instantaneamente com a queda do opressor. Vendo o algoz imóvel sobre o solo, achou-se possuído por um sentimento de vingança. Procurou o facão. Logo que pegou a peça que brilhava com a luz da lua disse adeus à intrusa.

Estaria vingando a morte da cadelinha e poupando os ouvidos.

Enquanto fez o gesto de enfiar a ferramenta contra a ave, ouviu uma voz firme rasgando o silêncio da noite. Olhando para a casa, viu um lindo vulto de branco, com os cabelos soltos.

A esposa pedia para que desistisse da ideia. O veterinário é o último a matar qualquer animal. Ela usou o lema que ele, naquele momento de desespero, havia esquecido.

O ódio leva a gente para trás, pensou. A esposa tinha razão. Se a ave morresse, a filosofia de proteção aos animais perderia crédito.

Quando olhou para a ave, ela se movimentava. Esqueceu o ódio. Um sentimento de caridade levou-o imediatamente a salinha de ferramentas. Pegou uma rede de pesca, lançou-a sobre o animal para que não fugisse. Acoberta pela teia, colocou-a no galinheiro com muita dificuldade.

Amarrou os pés e as asas. Colocou uma focinheira no bico. A ave era mais forte do que qualquer uma que havia segurado! Massageou suavemente o pescoço do bicho.

A luta para pôr a fera no galinheiro tinha desvanecido as forças.

Devagar o sol saía no horizonte. Exausto, foi para a cama. Não percebeu o beijo de despedida da esposa.

Ele, porém, não dormiu muito. Quando se levantou, foi ao galinheiro. O sol de dez horas não dissipou a surpreendente névoa. A noite não havia terminado, mas o clima melhorou um pouco.

Ele respirava com menos dificuldade. Não tropeçou em nada, mesmo a penumbra abundante das nuvens. Sentiu temor ao se aproximar do pássaro.

O pássaro estava a sua frente. Tinha olhos perspicazes. Admirava-se, não obstante, com a grandeza da fera. De onde tinha vindo a ave do demônio? Por que ela resolveu fincar tenda em seu terreno?

Aproximou-se. Tocou-a com receio. O diagnóstico rápido não constatou ferimento, mas o pescoço estava inchado. Ela tinha uma exuberante faixa no peito semelhante a um colar castanho.

Com cautela, tirou a focinheira do bico. Qualquer descuido, o pássaro podia contra-atacar. Pronto. O bico da fera estava livre. Retornou a casa, tomou café, mas não ouviu o assobio esperado.

O contato com a exuberante ave, não obstante, fez esquecer o ódio pelas perdas recentes. O seu rosto ganhou um brilho inexplicável. Recolheu o rosto dos animais mortos sem nenhuma lamentação. Não parecia o homem carrancudo dos últimos dias.

Também não precisou do psicólogo que a esposa tanto cobrava.

Desistiu de trabalhar naquela tarde. Telefonou ao chefe para comunicar a falta. Voltou de novo ao galinheiro. Perdeu uma galinha chocadeira, mas ganhou um pássaro de assas enormes. Que tinha aquela ave que, em pouco tempo, mudou sua disposição mental?

A ave realmente irradiava-lhe felicidade, pois a esposa percebeu mudanças. Ela recebeu flores quando saiu do banho. Fizeram sexo. Quanto tempo sem sexo!

Intrigado com a majestade de hóspede, ele telefonou para um amigo, especialista em aves da Universidade de Brasília. Quis saber a origem do pássaro. Será que era uma ave de outro mundo? Dias depois, recebeu pessoalmente o parecer do amigo.

O pássaro era uma autêntica ave migratória. O professor disse para ficar tranquilo. A ave não trazia doenças que atingiam as aves da Ásia e da Europa. O falcão vinha dos confins dos Estados Unidos ou do Canadá.

Jalilal contou para a esposa as notícias sobre o falcão. Se a ave permanecesse nas regiões de gelo, de onde tinha vindo, morreria. A comida ficaria escassa nas regiões nativas. Os Estados Unidos estavam sob neve. Havia pouca comida.

Na medida em que os dias passavam, crescia a obsessão pelo novo amigo. Jalilal o pássaro como uma ave. Via-a como uma psicóloga. A linguagem do pássaro é a linguagem sem limites, pensou. Se o pássaro estivesse obedecido ao limite das fronteiras, o transtorno não teria ocorrido.

Jalilal retornou ao galinheiro. Chegou a uma ideia. A ave era mais aventureira do que ele. Ela possuía um ímpeto que ele não tinha. Ela voou milhares d quilômetros para a sobrevivência. Desprezou distâncias. Ela sonhava com o pantanal. Sonhava com os Pampas. Sonhava com o cerrado.

Ele apalpou seus braços, incapazes de atravessar uma piscina olímpica. Se fosse fazer uma troca com a ave, não teria condições de físicas para buscar as colinas nativas do Pandion. A sua saúde mental melhorou por que sentiu, por meio do pássaro, que há um lugar onde poderia recuperar a saúde.

Jalilal olhou para a garagem. O Volkswagen popular foi comprado a prestação. Constituiu a casa com empréstimo de banco. O primeiro filho estava para nascer. Muitas dívidas para pagar. As leis para cumprir. A confusão se instalou na cabeça.

Não podia haver uma troca. Restava ficar preso ás teias criadas para prendê-lo.
De repente ouviu um assobio da águia. O falcão assobiava desesperadamente. A noite ficou insuportável. A lua voltou a ficar escondida sob as nuvens.

A esposa acordava a cada momento, pedindo para que libertasse a coitadinha senão morreria no galinheiro. A vizinhança podia muito bem denuncia-los ao órgão ambiental. O galinheiro era pequeno para o falcão. A esposa mais uma vez estava com razão.

Se o galinheiro era pequeno para a estirpe de um Pandion, o mundo também era. O falcão não tinha viajado ao Brasil para ficar preso. Ele viajou para a liberdade. Para a fartura da comida.

O assobio constante do falcão porém, foi lhe causando tristeza. A felicidade estava indo embora. O falcão era independente. Não precisava das regras do galinheiro. Nem também das regras dos homens.

O falcão assobiava de novo. Jalilau percebeu que sua alegria foi em troca da tristeza da ave. Era preciso libertá-la. O cativeiro causava a morte. Se não causava a morte, podia desnaturalizá-la.

Jalilal abriu o vitrosinho do banheiro pela última vez. Não tapou os ouvidos. O som da ave se tornou intolerável. Chega de pássaro! Chega de Pandion!

Desceu às escadas. Foi à cozinha. Pegou a arma que havia comprado na feira clandestina. Hoje resolveria a liberdade do triste cantor. Dirigiu-se ao galinheiro. Ele não viu a esposa que o acompanhava em passos tímidos.

Quando entendeu a intensão do marido, implorou para que não fizesse mal a ave.

Assim que Jalilal se aproximou do galinheiro deu um tiro seco e definitivo contra a jaula. O tiro quebrou o cadeado da porta. Abriu a portinha. O pássaro estava livre para voar. Á águia resistiu a sair. Ao olhar de novo, ouviu o intenso bater das asas.

O galinheiro estava vazio. A águia pesqueira tinha desaparecido como um morcego na noite sem lua. O silêncio voltou a dominar o quintal. Todos os dias ele ia ao galinheiro. A portinha estava sempre aberta. O último ocupante não voltou.

Decepcionado, acabou criando um ritual. Entrava no galinheiro. Fechava a portinha.

O cheiro que ainda exalava do falcão tinha desaparecido. É bem capaz que a esposa achasse que a depressão tinha voltado. Jalilal olhava para o céu dirigindo o carro. Parou o automóvel no sinal vermelho.

Antes de chegar ao trabalho, o habitual engarrafamento. Bateu a mão sobre o volante. Queria ser igual ao falcão. Ser independente.

 

Texto publicado originalmente no livro de antologia
da VI Mostra de Talentos do TCU – 2007. 

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.
Pandion. Narrativa de Bomani Flávio