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A mania.

A mania de ir à janela só agora percebi.

Fui seis vezes hoje espiar paisagens que não gosto, pois, do décimo andar, a visão é sempre de prédios mais altos ao lado e o céu escovado ultimamente por nuvens escuras, que substituíram, bem devagar, o longo tempo de estiagem.

Não vejo prazer em olhar para prédios tão feios, com pintura desgastada pelo tempo. E o que é pior. Agarrados por carrapatos como ar condicionados velhos e barulhentos.

Tudo tão distante e tão próximo ao mesmo tempo!

Mesmo assim, a distância entre a calçada lá embaixo até onde estou, porém,  parece não medir bem a mania que me tomou de uns dias para cá.

A repreensão da chefia, que vejo de relance com a ponta dos olhos no outro lado da sala, realmente não me fez bem; tem-me feito doer à cabeça sem aspirina nenhuma fazer efeito.

O resultado parece óbvio: além da cabeça doer, não consigo transpirar.  Sensação de tontura e vertigem, corpo gelado por fora e quente por dentro. E o que é pior: a mania.

Diagnóstico médico precoce chegou à conclusão de que estou com suspeita de anidrose.

A origem do problema, porém, só pode estar nesta assombrosa paisagem que não gosto.

Não a que vejo além dos vidros da janela suja abundantemente pelo cocô dos pombos. Mas a que cresce assustadoramente atrás das minhas costas.

O cara da esquisita mesa oval de madeira, revestida em cor laranja bem forte, conversando alto no telefone para todos ouvir, errou.  Sim, errou.

Consumo anormal de resma de papel, principalmente para pintar estas paisagens funestas, motivo que aleguei, não é motivo suficiente para mostrar manifestação de autoridade perante os subordinados.

Reunir toda a equipe para repudiar insignificância não parece a proporção adequada para mensurar o caráter de uma autoridade.

— Pois bem, ele não deveria ter mexido com este…

— Este é o quê? Pergunto uma voz masculina muito grave e sombria como que me provocou arrepios e calafrios, bem piores do que os sintomas da anidrose.

— Meu nome.

— Ainda sobre o nome?

A pergunta do estranho me assustou, pois eu não o conhecia e nunca o tinha visto; perguntei quem era, ele respondeu-me que era empregado da firma.

Trabalhava ali desde a inauguração do prédio quando a companhia se mudou para esta merda. Não se enturmava com o grupo porque gostava de absorver o que as pessoas tinham de melhor.

Só assim julgava que se aproximaria.

— O veneno do vice chefe é perigoso – disse-me ele bem sério –, pois destrói a pretensão da afirmação de qualquer um. Ele cheirou ameaças de pessoa mais jovem e bonita como você. Fez o óbvio. Então te empurrou, seu bobo!

Reagi como se tivesse gostado do conselho.

— Por que você me fala justamente agora? Se achou absurda a atitude dele, não acha que os pêsames vieram tarde demais?

— É que também ele jogou meu brio lá embaixo.

A medida em que ele falava, mais curioso ficava. Então me virei, lentamente. O homem era, na verdade, uma pessoa de alta estatura e usava roupa que se parecia com o ambiente onde eu estava. Ele usava roupa cinza.

— Não se assuste comigo, pois gosto de me vestir assim. Chamar a atenção tem seu preço, e é o que não tenho agora.

Ficamos conversando por muito tempo. Quando percebi, só restava eu no escritório. O expediente havia acabado há quase duas horas!

O cara era realmente bom de conversa, pois eu não cansava de ouvi-lo. Lembro-me muito bem da última palavra:

— Eu acho que o espertinho se aproveita da pinta de galã de olhos azuis, como ouço das mulheres aqui, para pisar nos adversários. O escorpião sabe utilizar bem das armas de que dispõe.

Ele viu que você era um adversário de pouco valor, mas um adversário. Pessoas assim merecem ser descartas logo. É o que ele parece pensar.

As revelações do desconhecido me trouxeram mais ódio contra a figura da mesa oval. Por outro lado, minhas pupilas brilharam quando ouvi revelações, semelhantes às que se passavam na minha mente, na boca de alguém.

Duas vítimas não mortas são armas ainda vivas, pensei.

Antes de ir embora, ele me disse que tinha encontrado a revide. Se eu estivesse interessado, eu devia procurá-lo na saída.

Descobri na saída do prédio que o sinistro ser se chamava Sabugo. Nome muito estranho, é verdade, porém bem condizente com a roupa que usava. Mesmo assim, a atitude, os modos de se expressar, a firmeza na voz, tudo nele era de uma objetividade sem igual, inclusive no conselho:

— Não se deve ter pena; assim que aparecer, empurra o todo-poderoso quando ele estiver passando sobre a escada de acesso exclusivo ao escritório dele. Nem ele nem a secretária vão te ver, pois, do lado, tem uma porta de incêndio que leva a outras saídas.

A sua sorte é que há uma outra saída, disse-me batendo nas costas e pegar um táxi, automóvel que parecia também sombrio, de uma cor escura como a noite.

Lembro-me, porém, da sentença anterior proferida por Sabugo:

“Ele jamais vai se recuperar de uma contusão do joelho que sempre reclama. Todos sabem do problema porque o falastrão faz questão de dizer que é craque de futebol.

A próxima novidade que ele contará é que vai trocar as duas pernas por quatro de uma cadeira de rodas. Será um homem inválido cujas mulheres olharão com pena, e não mais com admiração.”

Peguei meu fusca velho, mas o barulho do escapamento do carro não me incomodava tanto quanto a indagar-me: Mas por que tinha que ser eu?

Não encontrei a resposta, de imediato.

No dia seguinte procurei ansiosamente por Sabugo. Remexi todos os recintos da empresa, mas não o encontrei. Também tive medo de perguntar por ele. Não sabia porquê.

Encontrar Sabugo era tão difícil quanto ver a lua cheia nestes dias de céu nublado.

Os dias se passaram. Já tinha desistido quando senti um leve tapa no ombro:

— Olhe amigo, eu já me contentei com o insulto do cara. Quanto a você, porém, a expressão do seu rosto me faz crer que não. Alguma coisa me diz que você ainda morde os lábios. Só esta manhã você foi várias vezes à janela; colocava e tirava as mãos dos bolsos da calça.

Arregalei os olhos.

– Como você sabe? Procurei você por todo o lugar e não tinha te encontrava. Agora você reaparece como do nada. Onde você estava?

Outra vez a objetividade apareceu bem rápida:

— Não me observou porque os seus olhos eram para o desgraçado vice chefe. Isso é certamente uma atitude de quem está com um espinho na garganta. Espinho grande de peixe, não do pé de limão.

É preciso arrancar o espinho para fora, antes que você se sufoque pela boca. Até coisa pior pode acontecer.

Não sei como ele me convencia tão rápido.

— E você não faz nada?

— Bem, além do que já falei, posso ficar expiando a aproximação do vice chefe da escada próxima ao escritório dele.

Pela primeira vez fiquei indeciso com meu amigo. Não sabia se acreditava. Na verdade, tinha momento que eu dispensava essa exigência.

Mas agora bem que seria necessário. O óbvio de novo aconteceu. Ele me de novo a falar sobre si. A expressão com as mãos e a fala firme, por outro lado, me faziam crer que compartilharia de minha vingança.

Cada passo que eu daria, podia ser cada passo que ele estaria dando. Por outro lado, jamais pensei em usar da violência contra alguém. As mãos de uma pessoa são para construir a felicidade, e não dispor do contrário.

Acabou que o meu ódio venceu o medo. Se as pessoas soubessem, não causaria ofensa a ninguém. Aceitei os termos da vingança, desde que o enigmático companheiro não me desamparasse.

O novo dia chegou bem rápido, pois tinha tentado passar a madrugada tentando me arrepender. É melhor se arrepender na fase embrionária do que na fase de parto. Pois, depois, tudo é mais difícil. É na fase de parto que muitos não resistem e se destroem.

Certamente que a juíza de todas as horas perseguirá a mente perturbada como a perseguição dos espermatozoides contra o óvulo. Nem mesmo a leitura do “subtítulo da vingança” de Mateus 5 me fez voltar atrás. Deixei Cristo e o remédio para outra hora.

Se tem uma coisa que não devia haver é arrependimento por desonra. Maltratar uma pessoa na frente de todo mundo, é semelhante ao que a lavandeira faz com a roupa. Lava, lava até ficar limpa. Ele me levou a lavanderia para eu ficar limpo. Eu não precisava da limpeza porque eu não pedi.

Se eu peguei a resma de papel, não tinha porque reclamar. Contudo, sou uma pessoa cujo brio está lá embaixo. Ou continuo indo à janela ou então o safado vai me substitui na horrível paisagem que sempre detestei.

Quando cheguei à firma, por acaso encontrei o vice chefe subindo bem devagar às escadas. O cantor não olhava para trás. Ele segurava a maleta que com certeza devia ter os nomes das mulheres que ele já agarrou ali na empresa.

Realmente era boa-pinta, por isso se exaltava perante os anões, como eu, ou perante os de tamanho semelhante, como Sabugo.

Assim que ele subia as escadas que davam acesso ao seu escritório, olhou para trás, pois eu havia tropeçado. Não se assustou. Ao contrário, não se conteve de rir ao olhar para meus olhos.

O mínimo de misericórdia que eu reservava como pessoa tinha evaporado naquele momento.

A revolta cresceu de maneira tal que avencei sobre o cretino, puxando-o pelo paletó. O vice chefe rolou as escadas. Assustado, me aproximei. A cabeça do desafortunado estava sangrando. Mesmo assim, ele me puxou pelo colarinho.

Ao invés de correr, gritei.

O grito me fez acordar. Chateei-me, pois, era apenas um sonho. Como o sonho faz a gente se frustrar! Mesmo assim, todo o meu pijama estava molhado. Revoltei-me mais ainda quando olhei para o relógio.

Já era mais de oito horas da manhã, e o vice chefe possivelmente já tinha chegado. Eu estava atrasado. O plano daria errado.

Uma mensagem no celular vinda possivelmente do Sabugo dizia para a gente se encontrar no galpão de computadores velhos.

Cheguei e já estava me esperando.

— E aí, você conseguiu sobreviver à noite?

— Nunca estive tão bem quanto hoje. O idiota de pernas tortas vai ter que pagar pelo que fez! A repugnância é um crime hediondo, embora, creio eu, não esteja na lei.

— Finalmente, sinto que as suas palavras proveem de um homem que parou de ir à janela.

Após combinar os detalhes, despedimo-nos sem apertar as mãos.

A manhã toda voltei a praticar a minha nova mania. Desta vez a ida à janela foi bem superior aos das outras vezes. As ideias esquisitas, repentinas, de pular dali para baixo realmente seriam dar munição ao vice chefe.

Como a autoridade ia rir da minha desgraça! Um prêmio conquistado sem muito esforço. Olhando o abismo agora, quem devia cair era o pilantra.

O telefonema do Sabugo interrompeu meus pensamentos. Disse-me que não ligara antes porque o chefe tinha se atrasado, mas que, agora, o insolente já tinha estacionado o seu Audi de quatro canos no estacionamento privativo. Pediu para que eu fosse para o lugar combinado imediatamente.

A palpitação sanguínea palpitava semelhante a batida de um tambor. Não me via usando da violência para obter êxito. A circunstância nova, infelizmente, exigia uma coragem que eu nunca tive.

Usei de todas as precauções para que ninguém me visse. A palpitação sanguínea que subira agora a pouco, tinha desaparecido. Eu estava tranquilo. Será que a frieza dos piores elementos que a polícia lida todos os dias tenha se apoderado de mim? De qualquer forma, eu me sentia outra pessoa.

Ainda encontrei com Sabugo. Ele falou que o hábito do vice chefe era passar pela solitária escada privativa, antes de chegar ao escritório. Eu me escondi detrás da porta de incêndio.

Minutos depois ouço passos e assovios. Era o grandalhão que aparecia invadindo o espaço onde se achava insuperável. Que ódio o ver se agigantando diante de meus olhos cantando! O chato certamente está cantando porque confiava que era sempre um vencedor. Você merece morrer, seu desgraçado!

Pouco tempo depois, não me contive e gritei, assim que o cantor deu as costas para mim. Assustado, desequilibrou-se, rolando escada abaixo. A cena não me amedrontou. Não tive pena do mesquinho chefe.

Mesmo assim, me aproximei. Vi que saia bastante sangue da sua cabeça. O vice chefe estava imóvel. Repentinamente a a aparência assumiu a feição de um morto, pois nem mesmo a respiração se ouvia.

Agi com naturalidade ao sair da cena do crime. Com tanta naturalidade que, curiosamente, não tive saudade do Sabugo.

Os dias se passaram e não tive a coragem de procurá-lo. Pelo contrário, não queria me encontrar com ele. E se ele me denunciasse à polícia?

Para minha surpresa, o fim do poderoso foi aceito com muito convencimento pela polícia. O atlético vice chefe escorregara nas escadas, e a batida da cabeça no último degrau foi o responsável pela sua morte. A fatalidade ocorre no trabalho.

A euforia foi tanta que procurei Sabugo para compartilhar da vitória. Um colega me disse que não trabalhava ninguém com esse nome na firma. Dei todas as descrições possíveis, inclusive a de que ele tinha mais de um metro e noventa de altura e usava uma roupa camuflada conforme a cor do ambiente.

A resposta, entretanto, era sempre a mesma. Meus olhos não podem ter se enganado. Por muito tempo fiquei lembrando das conversas com Sabugo. O único consenso que que é conversei com ele. Para mim nada era mais cristalino do que a razão.

Ocorre-me, contudo, o pensamento que temo: talvez Sabugo tivesse ido embora após ter me usado. A vontade era matar o vice chefe.

Por outro lado, pode ter ocorrido outra hipótese. A velha e conhecida paisagem que vejo daqui de cima. Pensando bem, a paisagem é bem mais feia do que eu imaginava. Parece que se contorce e ganha vida em meus pequenos olhos.

As cores cinzentas e uniformes, o cheiro fedido do cocô dos pombos, o barulhento ar condicionado, tudo parecia, inexplicavelmente, apontar para meu obscuro amigo Sabugo.

Voltei mais tarde para espiar o ambiente. Aquelas paisagens tinham alguma coisa que eu ainda não tinha captado como agora. Parece que vi Sabugo saindo de todos os buracos que se possam ver em um sabugo de milho.

 

Brasília, DF, em 3 de dezembro de 2017.

‎A mania. Narrativa de Bomani Flávio