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Pandion.

Ele havia vestido a samba-canção para dormir quando ouviu um assobio estrondoso naquela noite em que a lua havia sumido por causa das baixas nuvens da primavera que virou outono.

Ansiosamente desligou a luz do abajur e espiou pelo vitrozinho a paisagem escura. Com a janela aberta, o som inquietava mais ainda os ouvidos.

De onde teria vindo a sinfonia do demônio que apareceu para atrapalhar o sono tão debilitado pelo atípico clima seco e calor de mais de trinta graus? Fechou o vitrozinho.

O misterioso som era mais impetuoso que os estranhos graves e agudos produzidos pela cigarra, inseto da família cicadoidea, que se espalha rapidamente com a chegada da primavera.

Um medo se apossou. Olhou para esposa que roncava suavemente e ficou surpreso porque ainda não tinha acordado.

Também não teve vontade de acordá-la uma vez que as aulas matutinas com as crianças da primeira série realmente tiravam o sono da lindinha de cabelos grandes e morenos.

Finalmente achou melhor acordá-la. Precisava compartilhar a funesta notícia com a querida.

Quando ia tocá-la, a orquestra solitária acabou o canto bizarro repentinamente. Será que o bicho morreu de tanto assobiar? A noite voltou a ficar calma como de costume.

Mesmo assim o medo não passou. O copo que a esposa geralmente levava com água para o quarto estava sem nenhuma gota de água.

Fez menção de jogá-lo contra a parede. Conteve-se. Precisava tomar água para se restabelecer do susto. O ouvido escutou bem a enigmática melodia.

Quando chegou na cozinha, abriu a geladeira. Bebeu todo o litro de água gelada. A água, contudo, não conteve a tremedeira. A sensação de pavor não se dissipou.

Olhou para o relógio de parede, que anunciava oito horas da noite. A noite mal havia chegado e recebia como presente o som de outras terras. Talvez o som do diabo.

A sua mãe tinha razão. A ideia de morar em região semiurbana era perigosa. Lembrou da cachorrinha Fifi cujo latido ainda não ouviu.

Nestas horas ela estaria arranhando a porta de madeira da cozinha como sinal de fome ou de companhia. Pensando bem o silêncio da cachorra talvez venha do medo do extraordinário som.

A explicação não convenceu porque a cachorrinha era valente. Ela enfrentaria qualquer animal. O silêncio da sentinela da casa prenunciava desgraça.

De qualquer forma, ficou até mais tarde assistindo televisão. Reportagem de jornal mostrava muitas cidades dos Estados Unidos sob neve. Surpresa lá e surpresa aqui, em que a escuridão, crescente, se contrastava com o branco mostrado pela televisão.

Não resistiu ao sono. Dormiu ali mesmo na sala.

Sob pesadelo, acordou mais tarde. Ouvia os mesmos sons estridentes de horas atrás. Desta vez o som era tão incomodo quanto milhares de cigarras juntas. Atravessava as inúteis portas e janelas atingindo os tímpanos do ouvido.

Escondia as orelhas entre as almofadas, mas a atitude se tornara insuficiente.

O barulho parava por momentos e retomava com mais força. Não sobrava mais paciência.

Desligou a televisão e foi à cozinha. Precisava achar a lanterna. Estava decidido a descobrir o ator do inigualável som.

E se for realmente um bicho, um bicho grande como um homem, teria forças para lutar? Se fosse em época chuvosa, certamente que teria, pois o corpo reagia bem ao clima úmido e ensolarado.

Ganharia energia e ficaria mais esperto até mesmo para o sexo abundante com a esposa. Não seria um homem de trinta anos capenga de disposição. Olhou para o relógio novamente.

Duas horas da manhã! Pôs as mãos de novo sobre os ouvidos.

Os sons, contudo, foram enfraquecendo, até sumirem.

Voltou ao quarto. Observou a esposa que continuava dormindo e teve pena de acordá-la.

Daqui a três horas a pequena vai levantar e sair às pressas para o trabalho. Resolveu não acordá-la. Vestiu o roupão preto de banho. Faltava, porém, algo. Faltava um facão que estava na salinha de ferramentas, próxima da cozinha.

Após pegar a peça, achava-se pronto para vasculhar o quintal.

Com certeza, pensou, o movimento que fez de dentro reprimiu o sumiço dos sons. Não desistiu, no entanto, da ideia de ir ao quintal. O quintal era seu mundo predileto, pois gostava de cuidar das plantas e da horta. Tinha três mil metros quadrados de área.

Assim que abriu a porta de visitas, sentiu um jato de calor sobre o rosto pálido. A temperatura quente realmente enfraquecia sua energia. Nem para carregar o facão tinha forças. O facão pesava no braço. O ideal seria uma arma.

As folhas das árvores não balançavam. Meio trêmulo começou a revistar. Foi ao portão da casa onde tudo parecia normal. Caminhou paralelo ao muro e nada de anormalidade.

Visitou o galinheiro e, na entrada, se assustou com algo terrível. A galinha que havia comprado na feira estava entrelaçada. Esqueceu de fechar a portinha! O terror continuou.

A cadelinha Fifi também estava morta! A cabeça tinha sido decepada.

O monstro havia comido o restante do corpo. Os olhos estavam tão dilacerados que parecia que haviam visto um ser apavorante. Não havia sangue por perto. O monstro estava com muita fome.

Novamente o medo se apossou. O devorador comia em silêncio! Quem estava entrando em seu mundo? Aqui sempre foi seguro. Segurou bem o facão na mão esquerda. O corpo estremecia.

O assassino estava por perto. Tinha uma coisa a fazer. Correr rápido para dentro da casa e chamar a polícia. E correu, mas tropeçou em uma pedra.

Aliás, tinha esquecido daquela merda que servia para contemplar o galinheiro quando abrigava a galinha. A luz da lanterna se apagou com a pancada. Quando caiu, o enigmático barulho reapareceu com intensidade de causar surdez.

A lua que havia sumido reapareceu com um brilho muito singular. As nuvens opressoras se dissiparam. Tudo havia se tornado claro. Podia-se distinguir qualquer vulto em poucos metros. Ouvia-se barulho de bater de asas muito forte. Pensou nas asas do demônio.

À noite o demônio possui asas. Percebeu que uma ave sobrevoava a sua cabeça. Pouco depois disso, finalmente seus olhos detectaram o ladrão do sono e dos animais. Os olhos detectaram uma ave muito grande e assustadora.

Com o contraste da luz da lua, o bicho parecia fantasmagórico.

Que ave era aquela? O barulho que ecoava era de atemorizar qualquer ouvido. Protegendo-se com asa mão, reunia forças contra as garras do mal lutava contra o maior pássaro que viu.

A luz da lanterna, antes de se apagar, possivelmente acabou cegando momentaneamente o pássaro que bateu com violência contra o poste de vôlei. A ave caiu no chão. O impacto levou-o a acreditar que a intrusa havia morrido.

O som estridente parou instantaneamente com a queda do opressor. Vendo o algoz imóvel sobre o solo, achou-se possuído por um sentimento de vingança. Procurou o facão. Logo que pegou a peça que brilhava com a luz da lua disse adeus à intrusa.

Estaria vingando a morte da cadelinha e poupando os ouvidos.

Enquanto fez o gesto de enfiar a ferramenta contra a ave, ouviu uma voz firme rasgando o silêncio da noite. Olhando para a casa, viu um lindo vulto de branco, com os cabelos soltos.

A esposa pedia para que desistisse da ideia. O veterinário é o último a matar qualquer animal. Ela usou o lema que ele, naquele momento de desespero, havia esquecido.

O ódio leva a gente para trás, pensou. A esposa tinha razão. Se a ave morresse, a filosofia de proteção aos animais perderia crédito.

Quando olhou para a ave, ela se movimentava. Esqueceu o ódio. Um sentimento de caridade levou-o imediatamente a salinha de ferramentas. Pegou uma rede de pesca, lançou-a sobre o animal para que não fugisse. Acoberta pela teia, colocou-a no galinheiro com muita dificuldade.

Amarrou os pés e as asas. Colocou uma focinheira no bico. A ave era mais forte do que qualquer uma que havia segurado! Massageou suavemente o pescoço do bicho.

A luta para pôr a fera no galinheiro tinha desvanecido as forças.

Devagar o sol saía no horizonte. Exausto, foi para a cama. Não percebeu o beijo de despedida da esposa.

Ele, porém, não dormiu muito. Quando se levantou, foi ao galinheiro. O sol de dez horas não dissipou a surpreendente névoa. A noite não havia terminado, mas o clima melhorou um pouco.

Ele respirava com menos dificuldade. Não tropeçou em nada, mesmo a penumbra abundante das nuvens. Sentiu temor ao se aproximar do pássaro.

O pássaro estava a sua frente. Tinha olhos perspicazes. Admirava-se, não obstante, com a grandeza da fera. De onde tinha vindo a ave do demônio? Por que ela resolveu fincar tenda em seu terreno?

Aproximou-se. Tocou-a com receio. O diagnóstico rápido não constatou ferimento, mas o pescoço estava inchado. Ela tinha uma exuberante faixa no peito semelhante a um colar castanho.

Com cautela, tirou a focinheira do bico. Qualquer descuido, o pássaro podia contra-atacar. Pronto. O bico da fera estava livre. Retornou a casa, tomou café, mas não ouviu o assobio esperado.

O contato com a exuberante ave, não obstante, fez esquecer o ódio pelas perdas recentes. O seu rosto ganhou um brilho inexplicável. Recolheu o rosto dos animais mortos sem nenhuma lamentação. Não parecia o homem carrancudo dos últimos dias.

Também não precisou do psicólogo que a esposa tanto cobrava.

Desistiu de trabalhar naquela tarde. Telefonou ao chefe para comunicar a falta. Voltou de novo ao galinheiro. Perdeu uma galinha chocadeira, mas ganhou um pássaro de assas enormes. Que tinha aquela ave que, em pouco tempo, mudou sua disposição mental?

A ave realmente irradiava-lhe felicidade, pois a esposa percebeu mudanças. Ela recebeu flores quando saiu do banho. Fizeram sexo. Quanto tempo sem sexo!

Intrigado com a majestade de hóspede, ele telefonou para um amigo, especialista em aves da Universidade de Brasília. Quis saber a origem do pássaro. Será que era uma ave de outro mundo? Dias depois, recebeu pessoalmente o parecer do amigo.

O pássaro era uma autêntica ave migratória. O professor disse para ficar tranquilo. A ave não trazia doenças que atingiam as aves da Ásia e da Europa. O falcão vinha dos confins dos Estados Unidos ou do Canadá.

Jalilal contou para a esposa as notícias sobre o falcão. Se a ave permanecesse nas regiões de gelo, de onde tinha vindo, morreria. A comida ficaria escassa nas regiões nativas. Os Estados Unidos estavam sob neve. Havia pouca comida.

Na medida em que os dias passavam, crescia a obsessão pelo novo amigo. Jalilal o pássaro como uma ave. Via-a como uma psicóloga. A linguagem do pássaro é a linguagem sem limites, pensou. Se o pássaro estivesse obedecido ao limite das fronteiras, o transtorno não teria ocorrido.

Jalilal retornou ao galinheiro. Chegou a uma ideia. A ave era mais aventureira do que ele. Ela possuía um ímpeto que ele não tinha. Ela voou milhares d quilômetros para a sobrevivência. Desprezou distâncias. Ela sonhava com o pantanal. Sonhava com os Pampas. Sonhava com o cerrado.

Ele apalpou seus braços, incapazes de atravessar uma piscina olímpica. Se fosse fazer uma troca com a ave, não teria condições de físicas para buscar as colinas nativas do Pandion. A sua saúde mental melhorou por que sentiu, por meio do pássaro, que há um lugar onde poderia recuperar a saúde.

Jalilal olhou para a garagem. O Volkswagen popular foi comprado a prestação. Constituiu a casa com empréstimo de banco. O primeiro filho estava para nascer. Muitas dívidas para pagar. As leis para cumprir. A confusão se instalou na cabeça.

Não podia haver uma troca. Restava ficar preso ás teias criadas para prendê-lo.
De repente ouviu um assobio da águia. O falcão assobiava desesperadamente. A noite ficou insuportável. A lua voltou a ficar escondida sob as nuvens.

A esposa acordava a cada momento, pedindo para que libertasse a coitadinha senão morreria no galinheiro. A vizinhança podia muito bem denuncia-los ao órgão ambiental. O galinheiro era pequeno para o falcão. A esposa mais uma vez estava com razão.

Se o galinheiro era pequeno para a estirpe de um Pandion, o mundo também era. O falcão não tinha viajado ao Brasil para ficar preso. Ele viajou para a liberdade. Para a fartura da comida.

O assobio constante do falcão porém, foi lhe causando tristeza. A felicidade estava indo embora. O falcão era independente. Não precisava das regras do galinheiro. Nem também das regras dos homens.

O falcão assobiava de novo. Jalilau percebeu que sua alegria foi em troca da tristeza da ave. Era preciso libertá-la. O cativeiro causava a morte. Se não causava a morte, podia desnaturalizá-la.

Jalilal abriu o vitrosinho do banheiro pela última vez. Não tapou os ouvidos. O som da ave se tornou intolerável. Chega de pássaro! Chega de Pandion!

Desceu às escadas. Foi à cozinha. Pegou a arma que havia comprado na feira clandestina. Hoje resolveria a liberdade do triste cantor. Dirigiu-se ao galinheiro. Ele não viu a esposa que o acompanhava em passos tímidos.

Quando entendeu a intensão do marido, implorou para que não fizesse mal a ave.

Assim que Jalilal se aproximou do galinheiro deu um tiro seco e definitivo contra a jaula. O tiro quebrou o cadeado da porta. Abriu a portinha. O pássaro estava livre para voar. Á águia resistiu a sair. Ao olhar de novo, ouviu o intenso bater das asas.

O galinheiro estava vazio. A águia pesqueira tinha desaparecido como um morcego na noite sem lua. O silêncio voltou a dominar o quintal. Todos os dias ele ia ao galinheiro. A portinha estava sempre aberta. O último ocupante não voltou.

Decepcionado, acabou criando um ritual. Entrava no galinheiro. Fechava a portinha.

O cheiro que ainda exalava do falcão tinha desaparecido. É bem capaz que a esposa achasse que a depressão tinha voltado. Jalilal olhava para o céu dirigindo o carro. Parou o automóvel no sinal vermelho.

Antes de chegar ao trabalho, o habitual engarrafamento. Bateu a mão sobre o volante. Queria ser igual ao falcão. Ser independente.

 

Texto publicado originalmente no livro de antologia
da VI Mostra de Talentos do TCU – 2007. 

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.
Pandion. Narrativa de Bomani Flávio