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entardecer
Viração do dia.

É na viração do dia

Que costumo ir para o balanço

Da minha desgastada rede,

Onde procuro ansiosamente resgatar o dia

Que se foi.

 

Balanceio-me suavemente para viajar no tempo.

Ambiente que conheço, porém perdido,

Por causa das rígidas leis da natureza.

 

Assim, desligo as luzes da varanda

Para as trevas mais cedo chegar.

Porém, de tanto balançar, após algum tempo,

Constato a esperada realidade:

Não consegui recuperar o dia que se foi.

O esforço foi em vão.

 

Não devo, não devo chorar.

A frustração não vai ajudar.

A impotência ganho não me dará.

 

A verdade é que não se recupera o tempo perdido com choro,

Nem se acha o tempo que se foi com o balançar de uma rede.

 

Posso balançar quantas vezes quiser,

Mas a viração do dia em nada recuperará o tempo que se foi.

Percebo, porém, que meu estranho ritual diário tem conquistado minha vira-lata,

Que late, com expectativa, quando estaciono o carro na garagem,

À espera da hora da rede.

 

O tempo com minha cadelinha,

Que gosta de ficar embaixo da rede logo que balanceio,

Recupera, de alguma forma, o instante de tempo que se foi.

 

Mas vejo também,

Escondida sobre o vazio vaso de planta,

Minha galinha pretinha,

Ansiosa para chocar.

Fica ali dias.

Testemunha silenciosa,

Do balançar da rede.

 

Todavia, o tempo perdido, que vivenciei vinte e quatro horas,

Ao longo do dia que se foi,

Jamais recuperarei.

Nunca conseguiria dobrar as indobráveis leis físicas,

Em qualquer passagem de tempo.

 

Mas é na viração do dia que estão os mistérios da vida.

Fronteira do dia que se foi e da noite que chega.

Instante que encanta e cega, que é o próprio tempo que se foi.

 

Brasília, 06 de outubro de 2017.

Viração do dia. Poema de‎ Bomani Flávio.

Ano novo.

O ano novo começou em outubro,

Mas dezembro surge se abrindo para meus olhos sedentos.

Vislumbro aquelas profecias para o ano-novo.

Renovação de promessas não cumpridas.

Muitas festas e comilanças

E fogos de artifícios.

 

Antes assistia com afinco o réveillon.
Mas agora dezembro vai emergindo como o circo que abre o ano-novo.

 

É que não se pode esquecer dos cinco dias antes.

Até mesmo do que aconteceu ou podia ter acontecido há três meses ou mais.

 

Banquetear será bom se todos derem as mãos desde os dias de ontem.

Os refugiados com os europeus.

Os latinos com os do Norte.

Os judeus com os árabes.

Não se esquecendo dos asiáticos com os chineses.

Banquete não tem data fixa.

Todos os dias seriam celebração!

 

Brasília, 6 de outubro de 2017 às 18:50

‎Ano novo. Poema de Bomani Flávio.

flor vermelha
A flor vermelha.

Muita chuva além da janela.

Como não lembrar?

Não tem como esquecer!

Lembrar-me da recente morte da flor vermelha,

Que resgatei do chão,

No caminho da previsível corrida,

De ontem de manhã.

 

Flor pisada!

Rosa encharcada!

Tanta água para minúscula criatura,

Abandonada em tão breve vida!

 

Paixão, amor, desejo e destruição.

Ingredientes regados a vinho tinto por uma flor vermelha,

Arrancada de sua próspera terra,

Para testemunhar o esperado possível,

Que virou o impossível,

Como a chegada de um tremor.

 

Pobre flor!

Encheu-se de uma felicidade enganosa,

Mas morreu tão desfigurada,

No trincado copo esquecido da minha cozinha!

 

Olho novamente a intensa chuva pela janela,

Mas não esqueço da pobre rosa vermelha.

Enterrada, agora a pouco, no encharcado lixo orgânico,

Que havia sobre a minha pia.

 

Preciso voltar a correr

Por amor, paixão e desejo,

Mas sem imprevisível destruição.

 

Testemunha já não quero ser.

Sentença que acabo de receber,

Logo após desfazer-me do outro lixo.

Daquele trincado copo da cozinha.

 

Resta-me senão ignorar as chuvas que me paralisam

Para a corrida voltar.

Meu coração certamente irá bater,

Caso outra rosa achar

E dela, com falsa esperança, cuidar

De irrecuperável dor que não fiz.

 

Brasília, 5 de outubro de 2017 às 20:54

A flor vermelha. Poema de Bomani Flávio.

aguia

Pandion.

Ele havia vestido a samba-canção para dormir quando ouviu um assobio estrondoso naquela noite em que a lua havia sumido por causa das baixas nuvens da primavera que virou outono.

Ansiosamente desligou a luz do abajur e espiou pelo vitrozinho a paisagem escura. Com a janela aberta, o som inquietava mais ainda os ouvidos.

De onde teria vindo a sinfonia do demônio que apareceu para atrapalhar o sono tão debilitado pelo atípico clima seco e calor de mais de trinta graus? Fechou o vitrozinho.

O misterioso som era mais impetuoso que os estranhos graves e agudos produzidos pela cigarra, inseto da família cicadoidea, que se espalha rapidamente com a chegada da primavera.

Um medo se apossou. Olhou para esposa que roncava suavemente e ficou surpreso porque ainda não tinha acordado.

Também não teve vontade de acordá-la uma vez que as aulas matutinas com as crianças da primeira série realmente tiravam o sono da lindinha de cabelos grandes e morenos.

Finalmente achou melhor acordá-la. Precisava compartilhar a funesta notícia com a querida.

Quando ia tocá-la, a orquestra solitária acabou o canto bizarro repentinamente. Será que o bicho morreu de tanto assobiar? A noite voltou a ficar calma como de costume.

Mesmo assim o medo não passou. O copo que a esposa geralmente levava com água para o quarto estava sem nenhuma gota de água.

Fez menção de jogá-lo contra a parede. Conteve-se. Precisava tomar água para se restabelecer do susto. O ouvido escutou bem a enigmática melodia.

Quando chegou na cozinha, abriu a geladeira. Bebeu todo o litro de água gelada. A água, contudo, não conteve a tremedeira. A sensação de pavor não se dissipou.

Olhou para o relógio de parede, que anunciava oito horas da noite. A noite mal havia chegado e recebia como presente o som de outras terras. Talvez o som do diabo.

A sua mãe tinha razão. A ideia de morar em região semiurbana era perigosa. Lembrou da cachorrinha Fifi cujo latido ainda não ouviu.

Nestas horas ela estaria arranhando a porta de madeira da cozinha como sinal de fome ou de companhia. Pensando bem o silêncio da cachorra talvez venha do medo do extraordinário som.

A explicação não convenceu porque a cachorrinha era valente. Ela enfrentaria qualquer animal. O silêncio da sentinela da casa prenunciava desgraça.

De qualquer forma, ficou até mais tarde assistindo televisão. Reportagem de jornal mostrava muitas cidades dos Estados Unidos sob neve. Surpresa lá e surpresa aqui, em que a escuridão, crescente, se contrastava com o branco mostrado pela televisão.

Não resistiu ao sono. Dormiu ali mesmo na sala.

Sob pesadelo, acordou mais tarde. Ouvia os mesmos sons estridentes de horas atrás. Desta vez o som era tão incomodo quanto milhares de cigarras juntas. Atravessava as inúteis portas e janelas atingindo os tímpanos do ouvido.

Escondia as orelhas entre as almofadas, mas a atitude se tornara insuficiente.

O barulho parava por momentos e retomava com mais força. Não sobrava mais paciência.

Desligou a televisão e foi à cozinha. Precisava achar a lanterna. Estava decidido a descobrir o ator do inigualável som.

E se for realmente um bicho, um bicho grande como um homem, teria forças para lutar? Se fosse em época chuvosa, certamente que teria, pois o corpo reagia bem ao clima úmido e ensolarado.

Ganharia energia e ficaria mais esperto até mesmo para o sexo abundante com a esposa. Não seria um homem de trinta anos capenga de disposição. Olhou para o relógio novamente.

Duas horas da manhã! Pôs as mãos de novo sobre os ouvidos.

Os sons, contudo, foram enfraquecendo, até sumirem.

Voltou ao quarto. Observou a esposa que continuava dormindo e teve pena de acordá-la.

Daqui a três horas a pequena vai levantar e sair às pressas para o trabalho. Resolveu não acordá-la. Vestiu o roupão preto de banho. Faltava, porém, algo. Faltava um facão que estava na salinha de ferramentas, próxima da cozinha.

Após pegar a peça, achava-se pronto para vasculhar o quintal.

Com certeza, pensou, o movimento que fez de dentro reprimiu o sumiço dos sons. Não desistiu, no entanto, da ideia de ir ao quintal. O quintal era seu mundo predileto, pois gostava de cuidar das plantas e da horta. Tinha três mil metros quadrados de área.

Assim que abriu a porta de visitas, sentiu um jato de calor sobre o rosto pálido. A temperatura quente realmente enfraquecia sua energia. Nem para carregar o facão tinha forças. O facão pesava no braço. O ideal seria uma arma.

As folhas das árvores não balançavam. Meio trêmulo começou a revistar. Foi ao portão da casa onde tudo parecia normal. Caminhou paralelo ao muro e nada de anormalidade.

Visitou o galinheiro e, na entrada, se assustou com algo terrível. A galinha que havia comprado na feira estava entrelaçada. Esqueceu de fechar a portinha! O terror continuou.

A cadelinha Fifi também estava morta! A cabeça tinha sido decepada.

O monstro havia comido o restante do corpo. Os olhos estavam tão dilacerados que parecia que haviam visto um ser apavorante. Não havia sangue por perto. O monstro estava com muita fome.

Novamente o medo se apossou. O devorador comia em silêncio! Quem estava entrando em seu mundo? Aqui sempre foi seguro. Segurou bem o facão na mão esquerda. O corpo estremecia.

O assassino estava por perto. Tinha uma coisa a fazer. Correr rápido para dentro da casa e chamar a polícia. E correu, mas tropeçou em uma pedra.

Aliás, tinha esquecido daquela merda que servia para contemplar o galinheiro quando abrigava a galinha. A luz da lanterna se apagou com a pancada. Quando caiu, o enigmático barulho reapareceu com intensidade de causar surdez.

A lua que havia sumido reapareceu com um brilho muito singular. As nuvens opressoras se dissiparam. Tudo havia se tornado claro. Podia-se distinguir qualquer vulto em poucos metros. Ouvia-se barulho de bater de asas muito forte. Pensou nas asas do demônio.

À noite o demônio possui asas. Percebeu que uma ave sobrevoava a sua cabeça. Pouco depois disso, finalmente seus olhos detectaram o ladrão do sono e dos animais. Os olhos detectaram uma ave muito grande e assustadora.

Com o contraste da luz da lua, o bicho parecia fantasmagórico.

Que ave era aquela? O barulho que ecoava era de atemorizar qualquer ouvido. Protegendo-se com asa mão, reunia forças contra as garras do mal lutava contra o maior pássaro que viu.

A luz da lanterna, antes de se apagar, possivelmente acabou cegando momentaneamente o pássaro que bateu com violência contra o poste de vôlei. A ave caiu no chão. O impacto levou-o a acreditar que a intrusa havia morrido.

O som estridente parou instantaneamente com a queda do opressor. Vendo o algoz imóvel sobre o solo, achou-se possuído por um sentimento de vingança. Procurou o facão. Logo que pegou a peça que brilhava com a luz da lua disse adeus à intrusa.

Estaria vingando a morte da cadelinha e poupando os ouvidos.

Enquanto fez o gesto de enfiar a ferramenta contra a ave, ouviu uma voz firme rasgando o silêncio da noite. Olhando para a casa, viu um lindo vulto de branco, com os cabelos soltos.

A esposa pedia para que desistisse da ideia. O veterinário é o último a matar qualquer animal. Ela usou o lema que ele, naquele momento de desespero, havia esquecido.

O ódio leva a gente para trás, pensou. A esposa tinha razão. Se a ave morresse, a filosofia de proteção aos animais perderia crédito.

Quando olhou para a ave, ela se movimentava. Esqueceu o ódio. Um sentimento de caridade levou-o imediatamente a salinha de ferramentas. Pegou uma rede de pesca, lançou-a sobre o animal para que não fugisse. Acoberta pela teia, colocou-a no galinheiro com muita dificuldade.

Amarrou os pés e as asas. Colocou uma focinheira no bico. A ave era mais forte do que qualquer uma que havia segurado! Massageou suavemente o pescoço do bicho.

A luta para pôr a fera no galinheiro tinha desvanecido as forças.

Devagar o sol saía no horizonte. Exausto, foi para a cama. Não percebeu o beijo de despedida da esposa.

Ele, porém, não dormiu muito. Quando se levantou, foi ao galinheiro. O sol de dez horas não dissipou a surpreendente névoa. A noite não havia terminado, mas o clima melhorou um pouco.

Ele respirava com menos dificuldade. Não tropeçou em nada, mesmo a penumbra abundante das nuvens. Sentiu temor ao se aproximar do pássaro.

O pássaro estava a sua frente. Tinha olhos perspicazes. Admirava-se, não obstante, com a grandeza da fera. De onde tinha vindo a ave do demônio? Por que ela resolveu fincar tenda em seu terreno?

Aproximou-se. Tocou-a com receio. O diagnóstico rápido não constatou ferimento, mas o pescoço estava inchado. Ela tinha uma exuberante faixa no peito semelhante a um colar castanho.

Com cautela, tirou a focinheira do bico. Qualquer descuido, o pássaro podia contra-atacar. Pronto. O bico da fera estava livre. Retornou a casa, tomou café, mas não ouviu o assobio esperado.

O contato com a exuberante ave, não obstante, fez esquecer o ódio pelas perdas recentes. O seu rosto ganhou um brilho inexplicável. Recolheu o rosto dos animais mortos sem nenhuma lamentação. Não parecia o homem carrancudo dos últimos dias.

Também não precisou do psicólogo que a esposa tanto cobrava.

Desistiu de trabalhar naquela tarde. Telefonou ao chefe para comunicar a falta. Voltou de novo ao galinheiro. Perdeu uma galinha chocadeira, mas ganhou um pássaro de assas enormes. Que tinha aquela ave que, em pouco tempo, mudou sua disposição mental?

A ave realmente irradiava-lhe felicidade, pois a esposa percebeu mudanças. Ela recebeu flores quando saiu do banho. Fizeram sexo. Quanto tempo sem sexo!

Intrigado com a majestade de hóspede, ele telefonou para um amigo, especialista em aves da Universidade de Brasília. Quis saber a origem do pássaro. Será que era uma ave de outro mundo? Dias depois, recebeu pessoalmente o parecer do amigo.

O pássaro era uma autêntica ave migratória. O professor disse para ficar tranquilo. A ave não trazia doenças que atingiam as aves da Ásia e da Europa. O falcão vinha dos confins dos Estados Unidos ou do Canadá.

Jalilal contou para a esposa as notícias sobre o falcão. Se a ave permanecesse nas regiões de gelo, de onde tinha vindo, morreria. A comida ficaria escassa nas regiões nativas. Os Estados Unidos estavam sob neve. Havia pouca comida.

Na medida em que os dias passavam, crescia a obsessão pelo novo amigo. Jalilal o pássaro como uma ave. Via-a como uma psicóloga. A linguagem do pássaro é a linguagem sem limites, pensou. Se o pássaro estivesse obedecido ao limite das fronteiras, o transtorno não teria ocorrido.

Jalilal retornou ao galinheiro. Chegou a uma ideia. A ave era mais aventureira do que ele. Ela possuía um ímpeto que ele não tinha. Ela voou milhares d quilômetros para a sobrevivência. Desprezou distâncias. Ela sonhava com o pantanal. Sonhava com os Pampas. Sonhava com o cerrado.

Ele apalpou seus braços, incapazes de atravessar uma piscina olímpica. Se fosse fazer uma troca com a ave, não teria condições de físicas para buscar as colinas nativas do Pandion. A sua saúde mental melhorou por que sentiu, por meio do pássaro, que há um lugar onde poderia recuperar a saúde.

Jalilal olhou para a garagem. O Volkswagen popular foi comprado a prestação. Constituiu a casa com empréstimo de banco. O primeiro filho estava para nascer. Muitas dívidas para pagar. As leis para cumprir. A confusão se instalou na cabeça.

Não podia haver uma troca. Restava ficar preso ás teias criadas para prendê-lo.
De repente ouviu um assobio da águia. O falcão assobiava desesperadamente. A noite ficou insuportável. A lua voltou a ficar escondida sob as nuvens.

A esposa acordava a cada momento, pedindo para que libertasse a coitadinha senão morreria no galinheiro. A vizinhança podia muito bem denuncia-los ao órgão ambiental. O galinheiro era pequeno para o falcão. A esposa mais uma vez estava com razão.

Se o galinheiro era pequeno para a estirpe de um Pandion, o mundo também era. O falcão não tinha viajado ao Brasil para ficar preso. Ele viajou para a liberdade. Para a fartura da comida.

O assobio constante do falcão porém, foi lhe causando tristeza. A felicidade estava indo embora. O falcão era independente. Não precisava das regras do galinheiro. Nem também das regras dos homens.

O falcão assobiava de novo. Jalilau percebeu que sua alegria foi em troca da tristeza da ave. Era preciso libertá-la. O cativeiro causava a morte. Se não causava a morte, podia desnaturalizá-la.

Jalilal abriu o vitrosinho do banheiro pela última vez. Não tapou os ouvidos. O som da ave se tornou intolerável. Chega de pássaro! Chega de Pandion!

Desceu às escadas. Foi à cozinha. Pegou a arma que havia comprado na feira clandestina. Hoje resolveria a liberdade do triste cantor. Dirigiu-se ao galinheiro. Ele não viu a esposa que o acompanhava em passos tímidos.

Quando entendeu a intensão do marido, implorou para que não fizesse mal a ave.

Assim que Jalilal se aproximou do galinheiro deu um tiro seco e definitivo contra a jaula. O tiro quebrou o cadeado da porta. Abriu a portinha. O pássaro estava livre para voar. Á águia resistiu a sair. Ao olhar de novo, ouviu o intenso bater das asas.

O galinheiro estava vazio. A águia pesqueira tinha desaparecido como um morcego na noite sem lua. O silêncio voltou a dominar o quintal. Todos os dias ele ia ao galinheiro. A portinha estava sempre aberta. O último ocupante não voltou.

Decepcionado, acabou criando um ritual. Entrava no galinheiro. Fechava a portinha.

O cheiro que ainda exalava do falcão tinha desaparecido. É bem capaz que a esposa achasse que a depressão tinha voltado. Jalilal olhava para o céu dirigindo o carro. Parou o automóvel no sinal vermelho.

Antes de chegar ao trabalho, o habitual engarrafamento. Bateu a mão sobre o volante. Queria ser igual ao falcão. Ser independente.

 

Texto publicado originalmente no livro de antologia
da VI Mostra de Talentos do TCU – 2007. 

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.
Pandion. Narrativa de Bomani Flávio

óculos de sol

Óculos de sol.

A vitrine da loja repleta de variedade de óculos de sol. Havia muitos modelos bonitos e de última geração. Muita gente lá dentro experimentando, porém ele se recusando a entrar.

Tinha o dinheiro em mãos, mas estava com medo de entrar. Jamais tinha entrado em uma loja chique do centro. Jamais tinha comprado óculos de sol.

E tinha que ser de marca. Logo ele, que concebia que esses aparelhos eram para pessoas bonitas e ricas. Não para pobres de espírito.

Sempre quando comprava alguma coisa, ia sempre às feiras. Nunca às lojas chiques do Gilberto.

Neste lugar o pessoal é mais exigente, observa as pessoas, os seus modos. Óculos de sol não se destinam para qualquer um.

Mas naquele momento a implacável ideia fez esquecê-lo das fraquezas que julgava possuir. Neste momento o dinheiro falava mais alto.

Com o dinheiro no bolso, mesmo pouco, a mancosidade do rosto se transforma em benção.

Complicado caminho que seus olhos fisgaram! Também porque ficou namorando àqueles óculos há mais de seis meses?

Quem ganha salário-mínimo não tem condições de comprar óculos de sol — óculos de sol de marca. Agora ele tem, porque ajuntou dinheiro.

Ufa! Longos e sofríveis meses para se livrar de um tormento.

Olhou de um lado a outro da rua. Não queria que nenhum conhecido lhe visse entrando na loja. Nenhum colega do trabalho podia vê-lo entrando ali. Logo aquela loja, que ele sempre chamava de casa de ilusões.

Agora sabe muito bem que tinha que ser assim. Olhou de novo para as esquinas. Aliás, não parava de olhar para ambos os lados das esquinas.

Olhou de novo, e eis um colega do trabalho se aproximando. Caramba! Cidade tão grande e, de repente, tão pequena para alguém sem fama como ele. Tinha que entrar, e entrou.

Desajeitado, punha as mãos no bolso, tirava-as, colocava-as novamente. Como os olhos sem óculos nos fazem lembrar que as pessoas são diferentes! Não sabia, pois, o que fazer. Se chamava a moça, se assobiava, para dizer que um freguês chegou.

Se não foi notado é porque loja chique já sente o cheiro de pobre, e de longe. Não se pode gastar tempo com pobre!

Os vendedores sabem quando um cliente é pobre. Eles demoram a atender deixando o pobre coitado babando as vitrines por longo tempo.

A demora no atendimento foi recompensada por uma morena de pernas longas que não coube em seus olhos mentirosos de japonês.

Antes que ela lhe interrogasse, o nervosismo falou mais alto.

— Eu, eu, eu … quero óculos!

Ele sabia que a elegante vendedora, de tailleur vermelho, tinha ficado sem graça, talvez por seus gestos repetitivos de colocar as mãos no bolso e tirá-las novamente.

Porém a emoção falava bem mais alto do que o português atrapalhado que lhe saia naquele momento de euforia. Amealhou todo o ar que o pulmão podia e repetiu a frase, desta vez bem alto.

— Eu quero óculos, dona!

A vendedora de boca pequena acabou com a cara amarrada que o rosto ostentava por causa do atrapalhado freguês.

— De qual modelo, senhor? – disse-lhe sorrindo.

Apontou para um Ray-Ban, de desenho arredondado e arrojado, que o brilho do sol batia no espelho d’água de frente à loja que, por sua vez, refletia nos óculos causando uma mistura de mistério e sedução que só o afobado comprador tinha enxergado.

Ela pediu o rapaz para se sentar. Entregou-lhe o modelo com muito cuidado para experimentar de frente ao espelho dupla face sobre o balcão.

Que emoção segurar um verdadeiro óculos de sol! Logo um Ray-Ban!

O elogio da vendedora de que os óculos lhe pegaram bem, sem precisar experimentar outro modelo, foi o suficiente para iniciar a recuperação da sua baixa estima.

Não foi preciso perguntar o preço, pois já sabia com muita antecedência. Pagou. Sim, pagou à vista, deixando a vendedora um tanto desconfiada da procedência do dinheiro.

Fez gesto de que queria já guardar o produto, mas ela disse que ficaria mais bonito se ele saísse da loja usando o objeto. Óculos tão bonitos não podiam ficar escondidos.

É preciso vencer a timidez, pensou. Nada melhor do que vencer a timidez agora. A vendedora dos grandes olhos verdes champanhe tinha razão. Pôs a peça.

Nossa, que emoção! Me sinto um novo homem. Bonito homem. Adquiri a grandeza de um homem sem cara amarrada. Virei um canalha em um simples colocar de óculos.

Não foi preciso, ao sair da loja, olhar para os lados para averiguar se vinha algum conhecido, mas recebeu um leve tapa nas costas.

Quando se virou, o amigo que tinha visto bem de longe. E o amigo riu, riu, riu.
— Não estou achando graça nenhuma, Felipe.

O amigo continuava rindo.

— Você está rindo da minha desgraça ou da minha alegria?

— De nenhum dos dois. Não me interprete mal. Achou que eu não tivesse visto você entrando na loja, seu bobo, mas eu vi você. Aquele desgraçado estava me enganando, foi isso que pensei quando você entrou na ótica.

— Quando me disse que ia ao médico por que estava com dor de barriga, eu não acreditei.

— Se chegou bem ao trabalho, como poderia ficar mal de hora para outra? Por azar seu, eu vi você entrando na loja. E resolvi expiar até este exato momento. Valeu a pena.

E ri de você, de suas atrapalhadas, do seu nervosismo. A sorte desta vez te ajudou, colocando uma gata de pernas de outro mundo em seu caminho.

Você é realmente sortudo, escolheu bem os óculos e escolheu muito bem a vendedora.

O amigo falava, mas Braga parecia estar longe. Não acreditava que a peça dos seus sonhos estivesse decorando seu rosto. Foi um longo tempo para comprar um remédio que destruiria a dor que machucava cada peça da sua vértebra.

Caminharam até o trabalho, bem devagar. Só o amigo falando. Não importava. O presente momento diferenciava-se dos outros.

Agora, só queria ver o mundo sob outra perspectiva. O mundo dos óculos de sol. Totalmente diferente, tudo em preto e branco. Sensação nova, gostosa.

O restante do expediente não tirou os óculos, nem para ir ao banheiro, servindo de gozação para os amigos, que lhe chamavam de novo galã do pedaço.

Se estava bonito, a chacota não interessava. Pura inveja. Óculos de marca não são para qualquer bolso raso.

Passou os dezoito anos de sua vida se perguntando porque não podia usar óculos de sol. Óculos de sol de verdade. A felicidade é que, de seis anos para cá, conseguiu um emprego de empacotador em supermercado no Gilberto.

Decerto que não era dos bons, pois gostaria de ser mesmo era caixa que ganhava o dobro.

Conseguido o emprego, o próximo passo, antes de calças e sapatos, seria adquirir um verdadeiro modelo Ray-Ban.

Constatou algo interessante em Felipe, mesmo sendo amigos e vizinhos. Ele tornou-se à sua sombra.

Ofereceu-lhe inclusive carona para casa, de moto. Primeira carona. Nunca havia lhe dado carona, apesar de morar perto. E Felipe tinha óculos de sol. Mas não era de marca. Foi comprado no camelô por uma ninharia.

Apesar disso, sentiu em Felipe a leve inveja dos bobos, mas desapareceu imediatamente. Boa pessoa.

Não foram para casa de imediato. Tinha que haver comemoração na lanchonete. Afinal, mudança de vida merece respeito e louvor dos amigos.

— Sabe que você ficou galã com os óculos, Braga?

— Não vem com essa, Felipe.

— É sério, você ficou galã. Olhe para os lados, as meninas estão observando você. A sua pele escura e os óculos combinam. Pela primeira vez, eu estou sendo ofuscado por um rival.

— Eu não sou seu rival, sou seu amigo, embora você seja mais assediado pelas meninas.

— Desculpe, eu não quis dizer isso.
Braga sentiu vontade de contar algo. Contar algo que há muito silenciou, mas que de vez em quando lhe perturbava o coração.

— Não quer saber por que eu comprei os óculos? Alguém precisa saber, e você é essa pessoa, Felipe.

— Você não precisa me contar nada, sei onde você mora e trabalha, sei qual horas acorda e levanta. Contar o quê?

— Quer ou não quer ouvir?

— Tudo bem, eu quero.

— É ruim ser discriminado, Felipe. Não digo ser discriminado, sentir-se discriminado. Pertencer a um lugar, e não o pertencê ao mesmo tempo. Poder usufruir de alguma coisa, e por outro lado, não poder usufruir.

— Como no paraíso do Éden, todos tem direito ou não tem direito. Destrói a gente por dentro.

— Bem devagar, destrói. Por exemplo, desejar uma garota, e saber que um boa pinta chegou primeiro. Sabe por quê? Porque tinha óculos de sol.

— Tudo bem que o desgraçado fosse galã. Antes de tudo, usava óculos de sol. Pior ainda, de feira.
— Você está falando de mim, seu amigo.

— Desculpe, não é de você. Não leve por esses caminhos. Eu torço para que você compre um igual ao meu.

— Continue então.

— Como estava dizendo, descobri que garotas gostam de caras que usam óculos de sol. Mulher gosta disso, de caras que usam óculos de sol.

— De caras que lhe transmitam maldade no rosto. De caras que lhes transmitam que é macho. Não só por dentro, mas por fora, também.

— Como são as coisas, Braga. Sempre considerei você um cara tímido. De casa para o trabalho, e do trabalho para casa. Não acreditava que você adorava óculos de sol. Você deu um grande passo, cara.
— Um grande passo ou não, a verdade é que eu perdi uma garota para um canalha. Há um ano isto me aconteceu. Aconteceu com uma linda e desbocada loira oxigenada do colégio, quando eu terminava o último bimestre do secundário.

— Havia tempo que eu mandava vários bilhetes para ela, através de minha melhor amiga, que infelizmente trocava as minhas mensagens. A falsa amiga reescrevia-os, dizendo que havia um admirador secreto.

— Com certeza que a descrição da paquera que a Teresa fazia não se referia a mim, como eu fiquei sabendo depois, mas ao Tom, a quem ela ajudava, às escondidas. Todos os dias eu mandava bilhete de apaixonado. Todos os dias a Teresa rescrevia o bilhete.

— O último bilhete — ah, o último bilhete — que informava a data, o local e o horário do nosso primeiro encontro, não chegou às mãos da mulher, porque o admirador que usava óculos de sol tinha chegado primeiro.

— Maldito dia que me fez crescer uma raiva contra todos que não usam óculos de sol. Antes de mim, o filho-da-mãe chegou. A menina ficou fascinada pelo canalha.

— O cara não tirava de jeito nenhum os malditos óculos, como eu mesmo averiguei, de longe, vendo os dois abraçados. Para a minha infelicidade, ele sabia dos segredos da sedução. As meninas gostam. Admiram.

— E você aceitou a derrota?

Braga pensou, e disse-lhe:

— Eu não aceitei a derrota, se é isto que quer saber. Resolvi me vingar comprando óculos de sol de verdade.
— E agora, vai para o ringue?

— Isto é que eu não sei, Felipe. Vale lutar tanto por um amor baseado em óculos de sol?

— Olha cara, a gente está sempre ganhando e perdendo. Ora a vitória está em nossas mãos, ora a tijolo também está em nossas mãos. Quero dizer que o mundo tem muitas garotas.

— Cada uma mais linda que outra, ou mais feia que outra, sei lá. Em breve, você encontrará uma outra, e verá que o mundo é um caminho de lições. A gente anda, anda, e a gente acaba caindo em nova lição. Você vai ver.

— Está certo, não tiro a sua razão, Felipe.
Neste momento a atendente chegou. Pediram coca cola.
— Você não imagina como foi difícil comprar os óculos, Felipe.

— Você é doido, realmente comprou óculos caros.
— Não falo do preço. Falo das amarras que existe dentro da gente, de barreiras que nenhum Raio X consegue detectar. Nenhum aparelho percebe o que se passa por trás dos olhos da gente.

Se percebesse o mundo teria menos problemas, pois os problemas das pessoas estão atrás da cor dos seus olhos. Se as pessoas fossem cegas, a violência seria bem menor e não caberia nos jornais. As dificuldades das pessoas são os olhos.

— Entendo.

— Não, não me entende. Não imagina como é difícil ser chamado de besta, de ser passado para trás por um miserável que tem óculos de sol. Assim, você não sabe, Felipe.

— Esforçar-se para entender é uma coisa. Sentir a dor é maior do que a gente; é outro sofrimento que ninguém sabe, a não ser a pobre da vítima.

— Se torna pior quando isto é uma rede. Rede de proporção gigantesca. Isto é que é pior. Vai para um lugar, lá está o problema. Foge para outro lugar, lá também está a rede. A utopia está nas pessoas de corações fingidos.

— Igualdade? Palavra inventada pelos galãs para dizer que somos todos iguais perante as mulheres. No fundo, no fundo, eles querem ser os donos de tudo. Isto, Felipe, você sabe muito bem. Mais do que eu, você sabe.

— E tem mais. O que me preocupa é a validade dos óculos de sol. Até quando vou poder olhar o mundo, o mundo dos óculos de sol, mundo preto e branco, se tudo que a gente vê, sem objeto algum, é colorido?

 

O conto ÓCULOS DE SOL foi publicado originalmente no portal Usina de Letras em 09 de abril de 2003.

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.

Óculos de sol. Narrativa do poeta Bomani Flávio.

sindrome da solidão

Síndrome da solidão.

Que síndrome de solidão é essa,

Que não cessa?

Pois querer ficar sozinho,

Estocado, enjaulado,

É cumprir a regra do solitário, de mansinho.

 

Talvez seja a falta de conversa comigo

Que me expõe a esse perigo.

 

Mas eu preciso falar comigo.

Pode ser neste sábado.

Pode ser em outro dia.

De um jeito ou de outro,

Eu preciso falar comigo.

 

Mesmo me tendo o tempo todo,

Não consigo falar comigo.

Há tempos que não consigo falar comigo.

 

Logo agora,

Que o descanso do trabalho

Afasta o labor diário,

Não consigo falar comigo.

Indago a toda hora porque isso acontece

E principalmente nas horas vagas.

E a resposta pode estar no muro.

Na inscrição perdida na pichação de uma escola classe:

“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Pichação que me remete à Trindade.

 

A santíssima trindade falava consigo,.

Concordava-se, pois a vontade era a criação.

Não a expropriação.

 

Tudo em nome do Pai,

Do Filho

E do Espírito Santo.

 

As inquietações do meu ser, porém, impedem de falar comigo.

Não têm a unanimidade de Cristo,

Do Pai,

Nem do Espírito Santo.

 

Sou três pessoas em um só corpo.

Será que sou mais?

Cada uma, porem, não se sacrifica em prol da outra.

Cada uma usurpando do direito de se impor.

 

Assim jamais serei um.

Poderei ser tudo,

Menos a Trindade.

Quer dizer, a trindade sem unidade.

Coração à deriva de outros corações.

Bem além de três.

 

Poema publicado originalmente no livro
“Coletânea de Textos dos Escritores do Tribunal de Contas da União”
na V Mostra de Talentos do TCU em 2006.

 

Brasília, DF, em 3 de outubro de 2017.

Síndrome da Solidão. Poema de Bomani Flavio.