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controle

Eu preciso assumir o controle da própria vida.

De braços abertos para mim mesmo,

Olho para o horizonte amarelado,

Que se vai.

Como um galo acanhado no amanhecer,

Anuncio meu quase rouco canto coro-cocó.

Eu preciso assumir o controle da minha vida.

Eu preciso assumir o controle.

 

Pois outro janeiro chegou.

E chegou também o eterno dogma da família,

Que me assusta como uma tempestade que nunca vai embora.

Virou uma tosse.

Quase uma tosse alérgica,

Que me tem levado, às vezes, à confusão mental.

 

Eu preciso assumir o controle da própria vida.

Eu preciso assumir o controle…

Porém, diferente de uma criança que vejo soltando pipa em minha frente,

Já não tenho dez anos de idade,

Nem vinte e poucos anos,

Nem trinta e poucos anos.

 

Mas, às vezes, ouço que eu preciso assumir o controle da própria vida,

Da tão incerta vida,

Como se, se não tiver o controle,

Tudo perecerá.

Dias atrás ouvi inflamado discurso no início das férias de verão.

Ontem o tema dominou o café quase que a manhã toda.

Hoje, porém, me perco nesse devaneio.

 

Eu preciso assumir o controle da própria vida,

Para, quem sabe, descobrir onde está minha identidade oficial,

Se é que preciso do documento.

Eu preciso assumir o controle da própria vida,

Para melhorar no trabalho,

Em casa

Ou no amor dos anos.

Porém, como controlar,

Se tudo parece tão incerto?

A vida começa com a matemática dos nove meses,

Mas termina por um obscuro cálculo da natureza,

Desconhecido pela ciência.

Muitos chamam de fatalidade.

O que não é.

Por que para morrer não se computa os nove meses de aviso?

Por que o descontrole?

 

Controle, controle e controle!

Como é bom ter o controle da própria vida!

Como é bom ter o controle das coisas!

A chave do carro, pilotar máquinas,

Estudar, obter sucesso,

Namorar pessoas bonitas e poderosas,

Ter a própria família.

Controlar até para mandar em alguém.

Resta-me então fugir para contemplar o Rio Grande(*),

Sentado sobre este cais.

 

Observo que as águas do rio caem da esquerda para a direita,

Em uma cadência mais rígida do que desfile militar.

Desde que nasci, o curso do Rio Grande sempre foi assim.

O Rio Grande controla o curso de sua água.

 

Mas a inglesa Holly Butcher(**), no leito da morte,

Não pode controlar o curso da própria vida:

“É uma coisa estranha perceber e aceitar a sua mortalidade aos 26 anos de idade.

É apenas uma daquelas coisas que ignoras”

“Não quero ir. Eu amo a minha vida. Estou feliz…

Mas o controle está fora das minhas mãos.”

Assim como o horizonte se vai,

Holly Butcher se foi.

O controle está fora das mãos.

Mas o controle eterno da própria vida

Será possível?

Eu fico em meus devaneios.

 

Eu preciso assumir o controle da própria vida.

Às vezes a própria vida tem o outro lado da moeda!

Doenças surgem para desafiar o controle,

De quem acha que é o dono da própria vida.

 

O próprio Rio Grande sofre ameaça em seu curso,

Se a chuva não cair lá na cabeceira.

Controle e ameaça sempre conviverão juntos.

Já não tenho sessenta e poucos anos,

Nem noventa e poucos anos.

Mas eu preciso assumir o controle da própria vida,

Porque há em tudo um controle.

Bem além do que se possa fazer.

 

A morte é, por natureza, o controle do controle.

Maldição que expulsa a vida da vida.

Segredo ainda não desvendado.

Eu querendo controlar a minha própria vida,

E ela querendo fazer seu próprio controle.

O terrível controle de mortalidade,

Que se junta ao controle da minha família.

 

Volto a tossir.

Eu preciso assumir o controle da própria vida.

Eu preciso assumir o controle…

Eu preciso assumir…

Eu preciso…

Eu…

Assim me tornarei um robô

Dos anos noventa.

 

(*) Rio Grande é um rio que banha a cidade de Barreiras, no oeste da Bahia, estado do nordeste brasileiro.
(**) O poema é homenagem à inglesa Holly Butcher, vítima do câncer em janeiro de 2018.

 

Barreiras, Bahia, Brasil, no dia 19 de janeiro de 2018.

Eu preciso assumir o controle da própria vida. Poema de Bomani Flávio.

O câncer é um ser vivo.

O câncer é um ser vivo,
Pequenino,
Ora grande,
Que pode estar doidamente dentro de você.

 

Porém não tenha medo do hospedeiro,
Se o invasor ameaçar os órgãos e tecidos
De seu precioso ser.

 

Ameaça não haveria,
Se o tumor estivesse enjaulado no zoológico,
Como bicho em extinção,
E não como estranho monstro,
Que ninguém vê.

 

O carocinho é um ser vivo,
Que cresce nos dias lindos de sol,
Chuva ou inverno.
Reproduz-se como lavoura,
Infelizmente bem dentro de você.

 

Não tenha medo do bichinho,
Se a esperança não for pequena.
Caso não seja grande,
Esquente-se sob a intensa luz do sol,
Até um dia a estrela se tornar uma bola de gelo.

 

O nódulo é um ser vivo,
De cérebro psicopata,
Pois interage com seu corpo,
Savana preferida,
Onde reina como um animal.
Somente para destruir você.

 

O bichinho é um ser vivo,
Que não tem critério de beleza.
Olhos pretos, azuis, verdes.
Pele clara ou morena.
Não é preconceituoso como você.
Quer devorar todas as vísceras,
Peles e tudo o que for parte de você.

O bicho é realmente cruel.
Parece arma,
Que está em todo o lugar.
É maior do que qualquer leão.
Devora mais do que a anaconda ou tubarão branco.
Tudo para destruir você.

 

O câncer é o animal mais terrível da face da Terra,
Porque prefere os labirintos,
Que você talvez conheça,
Lá do fundo do seu ser.

 

O câncer só quer crescer, crescer.
Crescer é o seu norte.
Ambição que começa bem pequena.
Depois prolifera,
Sem ninguém perceber.

 

Não tenha medo do câncer,
Que te ver como uma savana.
Ele não escolhe olhos lindos,
Lábios enfeitados pelo batom.
Nem quem tem dinheiro ou cabelos sedosos.
O câncer é um mistério que olho nu não vê.

 

O câncer é um ser vivo,
Que impõe medo de morrer.
De mãos dadas, porém, resta a esperança,
De prendê-lo no zoológico,
Como animal em extinção,
Para nunca mais dali possa fugir.

 

O câncer poderia morar apenas no horrível pesadelo,
Se os olhos não cobiçassem o diamante dos olhos,
Que é a felicidade.
O câncer é a própria infelicidade,
Para impedir uma existência breve,
Que já é tão breve.

 

“Bastidores do poema: Visitava minha cidade natal,
Barreiras, no oeste baiano, nordeste do Brasil, em meados de janeiro de 2018,
quando tomei ciência de mortes recentes de mulheres,
vítimas do câncer.”

 

‎Brasília, DF, em 18 de janeiro de 2018.

O câncer é um ser vivo. Poema de Bomani Flávio.

Caroço

O caroço que dói nas mulheres.

Outubro Rosa é uma data.

Mas o que enlouquece é o caroço,

Que dói nas mulheres.

Câncer que enlouquece a ciência,

Que se encanta com o terror.

 

Porém é preciso ficar atento,

Porque chega de mansinho,

Não bate a porta

E toca bem mais que o pavor.

 

O grânulo, que dói nas mulheres,

Intimida a vítima,

Que sofre, em sofrível baixa autoestima.

 

A íngua é míssil,

Enviado pelo Tudo,

Para levar angústia,

Mesmo em quem não seja peitudo.

 

O incômodo é uma bomba que não passa por check-in.

No checkout, brinca com a vida,

Pois sua missão é a própria dor,

Que pode levar ao fim.

 

O grumo, que amedronta as mulheres,

endoidece a ciência,

Que se atrai pelo terror.

 

Mas uma coisa a mulher deve fazer:

É encarar o próprio terror,

Com delicadeza e furor.

 

O grânulo, que amedronta as mulheres,

Desafia a ciência,

Que, para reparar injustiça,

Em diligência, sempre deve estar.

 

A ciência precisa furar o caroço,

Para extirpar outros grânulos.

Que murcharão em destroço.

 

Dessa forma, a ciência enlouquecerá o nódulo,

Que fugirá para sempre,

Por causa do terror.

 

(*)Imagem disponível em: https://www.saudedica.com.br/os-14-beneficios-do-caroco-do-abacate-para-saude/

O caroço que dói nas mulheres.‎ Bomani Flávio.

Como será o ano novo que se aproxima?‎

Como será o ano novo que se aproxima se o velho não é só um conceito?
A dúvida chegou tão de mansinho em que eu estou nesta bicicleta,
Pedalando para sentir o tempo que para mim não parece perfeito.

Sim, o tempo me parece tão imperfeito quanto eu.
Ruguinhas, problemas ali em meu corpo, que vai perdendo o apogeu.
Tudo isso o tempo vai aplicando quase me deixando no breu.

Difícil de acreditar sobre como será o ano novo que se aproxima,
Se eu não fizer uma média e dividir pelo que vi no ano velho.
Espero que o resultado não seja, para ouvir ou ver no jornal, uma bombinha de Hiroshima.
Qualquer artefato, aliás, pode trazer muita coisa de vermelho.

Como será o ano novo que se aproxima com minhas metas,
Se as anteriores, entre dez, mais de sete não se cumpriram?
Sou daqueles que trabalha calado, sem tocar trombetas.
Assim, algumas coisas fluíram, outras não convergiram.

Ano velho ficando para trás porque o novo se aproxima.
Parece que tudo tenha sido feito para ter um clima.
O tempo, por si só, parece um clima que contém toda a matéria-prima,
Para um bruxo ou feiticeira que trabalha para fazer algo com sua vítima.

Eu sou uma dessas vítimas que nada pode fazer.
Ano novo ou ano velho, apenas é nomenclatura,
Para eu achar que consiga algo refazer.

Preciso pedalar, pedalar e pedalar.
Talvez pedalando eu consiga achar que tenha enganado o tempo,
Porque estarei usando sua linguagem,
Que é a do movimento com algum tipo de passatempo.
Pensando melhor, talvez tudo não passe de uma roupagem.

 

“O poema foi escrito entre às 10 horas da manhã e 12:37
sob muito sol e alguma expectativa de chuva na Capital Federal.

Brasília, DF, Brasil, 29 de dezembro de 2017.”

Como será o ano novo que se aproxima? ‎Bomani Flávio dos Santos Ferreira.

prestando atenção

Estou prestando atenção mais em mim.

Estou prestando atenção mais em mim.

Em cada coisa que faço, leio ou vejo.

Não apenas em que coisas que, por intuição, antevejo.

Como agora em que me maquio.

Ritual esquecido, porém recuperado,

Pela linda penteadeira que acabo de comprar.

 

Penteadeira com espelho oval e básica,

Para eu me cuidar.

Há que se ter um ponto de partida.

 

Quando alguém perguntar como conseguiu a mudança,

É porque agora estou prestando atenção mais em mim.

Mania ou medo, parasita silencioso,

Que deixei entrar em minha vida,

Está ficando para trás.

Lá no fim da rua que não existe.

 

Os cuidados maternos são modelos que, infelizmente, deixei não aflorar.

Lembro-me que qualquer ameaça como bebê ou criança era só chorar,

Que minha mãe vinha, às vezes tropeçando, me confortar.

Cuidar de si é também se gerenciar.

 

Se não eliminar incertezas,

Aparecerão diversos cuidadores invisíveis,

 

Como o clonozepam, as drogas e o alcoolismo.

Os dias atuais não ajudam para quem anda sempre em alta velocidade.

Se for isso mesmo, nada enxergarei com cumplicidade,

Exceto se não se importar com regra nenhuma para deixar com vulnerabilidade.

 

Estou prestando atenção mais em mim para remover rugas,

Que se impregnaram em baixa velocidade, sem pedir permissão.

O resultado já se conhece: o que me falta pode ser falta de coesão.

 

Mas a penteadeira é só um acessório.

Inclusive os novos sapatos,

As novas roupas, os perfumes.

 

Maquiando-me vou me conhecendo melhor.

Tempo gasto mais importante que o tempo perdido,

Sombra de terror que não volta mais.

 

Eu mesmo sou minha vida, meu gerente, minha própria sentinela.

Estou agora me conhecendo melhor.

No que eu gosto e no que me entristece.

Estou prestando mais atenção em mim.

 

Brasília, DF, Brasil, 19 de dezembro de 2017.

Prestando atenção. Poema de ‎Bomani Flávio.

atacama

Os desertos da Chama e do Atacama.

São os desertos da Chama e do Atacama,

Que aparecem às vezes de madrugada?

Se os sonhos têm acordado você de madrugada,

Preste então atenção,

Porque talvez não sejam ilusão.

 

O que não for ilusão para os olhos da carne,

Não o será para os olhos do coração.

Sonhos que vêm,

Sonhos que vão,

Não são simplesmente sonhos.

São ventos de mudança,

Ainda presos entre os olhos da carne e os olhos do coração.

 

E quando envolver deserto,

Mudanças importantes virão.

 

Quando isso acontecer,

Enfrentará o grande deserto da Chama.

Maior de todos os desertos dos céus e da terra.

Deserto que não é o do Atacama.

 

Mas precisa-se passar pelo árido e magistral Atacama,

Deserto mais alto do mundo,

Para chegar ao deserto da Chama.

O grande deserto dos sonhos,

Maior de todos os desertos dos céus e da terra,

Que faz surgir tudo de bom que há na vida.

Este é o deserto que todos temem.

 

O Atacama pode até tremer as pernas e os olhos.

Mas o grande deserto da Chama não tem começo.

Por não ter começo, também não tem fim.

Quem consegue a façanha, mestre dos homens se torna.

Mas para trilhar o grande deserto da Chama,

Comece pela parte mais baixa do Atacama.

Caso comece, termine na parte mais alta.

Não desvie nem para a esquerda,

Nem desvie para a direita.

Siga sempre em frente.

 

Somente realize a façanha se ouvir a voz,

Que é o ponto de partida para a Chama.

Não é a voz do medo, da esquizofrenia.

É a voz das mudanças,

Que querem existir.

 

Mudanças existem,

Apenas estão presas.

Liberte-as e será feliz.

 

Mas a voz da felicidade vem e vai.

Se tiver sonhos que vão e vêm,

Mas não sabe o significado,

Viaje para o deserto do Atacama.

Ponto de partida para outro deserto.

O grande deserto da Chama.

Maior de todos os desertos dos céus e da terra.

 

Andará sozinho,

Sob sol quente.

À noite, tempos frios.

Os dias chegarão,

Mas você avançará.

 

Mas, para não olhar para o norte ou para o sul,

Do deserto do Atacama,

Criou uma regra:

Nunca olhar para trás.

Por que você está aqui?

Quem trouxe você para cá?

O deserto do Atacama é muito grande.

 

Perguntas, muitas perguntas, são combustíveis,

Para obter respostas convincentes.

Quando estiver inquieto na vida,

Corra para o deserto do Atacama.

Ponto de partida para o grande deserto da Chama.

 

Isto ocorre por causa de Elohim,

O guerreiro do deserto da Chama.

De vez em quando Ele procura valentes,

Para o desafio da Chama,

Cujo ponto de partida é o deserto do Atacama.

 

Se Ele incutiu o sonho em você.

Tudo será seu,

Qualquer lugar será seu,

Inclusive o planeta Marte,

Desde que atravesse o deserto da Chama.

 

Deserto que Abraão, o pai de muitos povos, atravessou.

O homem saiu da parentela e da casa dos pais,

Para longa jornada,

A fim de herdar uma terra,

Pois sabia que seria sua e dos seus.

 

Abraão deixou um legado de oportunidade,

Para quem superar a própria vulnerabilidade.

Não tinha GPS, nem bússola.

Apenas um sonho de consumo.

Posteridade como as estrelas do céu,

Contato que andasse quase 2.000 km,

Sob muito sol de perder de vista.

 

Superou todos os obstáculos,

Para chegar ao deserto da Chama.

O grande deserto dos sonhos,

Que está dentro de você.

Mas também pode estar fora, se não acreditar.

 

Brasília, DF, Brasil, 17 de dezembro de 2017.

Os deserto da Chama e o do Atacama. Poema de Bomani Flávio.

síndrome do pânico

Síndrome do pânico.

Doutor, neste consultório de terapia, apenas me ouça.

Desintegrar-me é a sensação etérea que sinto,

No interior do meu ser.

Mas não consinto,

Por isso o descontentamento

Que chega para me abater.

 

Pois, como reagir?

Dizem que é a síndrome do pânico

– É isso mesmo? –

Que explodiu com larvas de todo tipo de terror dentro do meu ser.

 

Taquicardia, falta de ar ou alucinação.

Tudo tão vulcânico.

Sem medida alguma,

Para entender.

 

Luta desigual de todo o dia.

Semblante caído, que não é desídia,

Contra um ser invisível,

Poderoso como o pavor, nada plausível.

 

Estou cansado de tanto me assustar,

Por iminente cheiro de morte a açoitar-me.

Só não sei como, mas devo me afastar do perigo,

Do terror que me faz sentir tão sem abrigo.

Densa floresta em que estou sozinho comigo.

 

Disseram que preciso recuperar o equilíbrio emocional perdido,

Com o rivoltril, o clonazepam ou a paroxetina.

Novos amigos, para quem estar aturdido,

Entre equilíbrio e ambiguidade.

Viver eu quero, mas nada de ansiedade.

 

Do jeito que estou, a síndrome do pânico sempre vai me vencer,

Neste e no próximo amanhecer.

Antes que me sucumba,

Resta-me descobrir o monstro que construí,

Durante vivência em que anuí.

 

De todo o modo, o monstro se escondeu dentro do ser do meu ser,

Que eu, o próprio dono, achava que conhecia.

Alojou-se no cofre mais escondido do mundo,

Sem ao menos eu perceber.

 

Portanto, doutor, preciso desconstruir o monstro,

Não desintegrar-me.

O descontentamento é a esperança que resta,

Para sair desta densa floresta.

Terreno pantanoso,

Para um coração há muito imaginoso.

 

Mas preciso realmente saber quem é o bicho,

Que se impregnou, em meu assustado ser, como carrapicho.

 

Quanto mais aparecer o retrato falado,

Quanto mais eu jogá-lo para fora,

Creio que a ameaça irá embora.

 

O que mais quero, aliás, é vê-lo encurralado,

Para não me sentir,

Com tão pouca vida,

Tão amargurado.

 

No interior do meu ser,

Somente assim poderei ver antiga paisagem.

Como os raios de sol,

Que eu apreciava,

Bem cedinho, no amanhecer.

– Ou então no entardecer -,

De um dia qualquer.

 

Brasília, DF, Brasil, 10 de dezembro de 2017.

Síndrome do pânico. Poema de Flavio di Fiorentina.

manias

A mania.

A mania de ir à janela só agora percebi.

Fui seis vezes hoje espiar paisagens que não gosto, pois, do décimo andar, a visão é sempre de prédios mais altos ao lado e o céu escovado ultimamente por nuvens escuras, que substituíram, bem devagar, o longo tempo de estiagem.

Não vejo prazer em olhar para prédios tão feios, com pintura desgastada pelo tempo. E o que é pior. Agarrados por carrapatos como ar condicionados velhos e barulhentos.

Tudo tão distante e tão próximo ao mesmo tempo!

Mesmo assim, a distância entre a calçada lá embaixo até onde estou, porém,  parece não medir bem a mania que me tomou de uns dias para cá.

A repreensão da chefia, que vejo de relance com a ponta dos olhos no outro lado da sala, realmente não me fez bem; tem-me feito doer à cabeça sem aspirina nenhuma fazer efeito.

O resultado parece óbvio: além da cabeça doer, não consigo transpirar.  Sensação de tontura e vertigem, corpo gelado por fora e quente por dentro. E o que é pior: a mania.

Diagnóstico médico precoce chegou à conclusão de que estou com suspeita de anidrose.

A origem do problema, porém, só pode estar nesta assombrosa paisagem que não gosto.

Não a que vejo além dos vidros da janela suja abundantemente pelo cocô dos pombos. Mas a que cresce assustadoramente atrás das minhas costas.

O cara da esquisita mesa oval de madeira, revestida em cor laranja bem forte, conversando alto no telefone para todos ouvir, errou.  Sim, errou.

Consumo anormal de resma de papel, principalmente para pintar estas paisagens funestas, motivo que aleguei, não é motivo suficiente para mostrar manifestação de autoridade perante os subordinados.

Reunir toda a equipe para repudiar insignificância não parece a proporção adequada para mensurar o caráter de uma autoridade.

— Pois bem, ele não deveria ter mexido com este…

— Este é o quê? Pergunto uma voz masculina muito grave e sombria como que me provocou arrepios e calafrios, bem piores do que os sintomas da anidrose.

— Meu nome.

— Ainda sobre o nome?

A pergunta do estranho me assustou, pois eu não o conhecia e nunca o tinha visto; perguntei quem era, ele respondeu-me que era empregado da firma.

Trabalhava ali desde a inauguração do prédio quando a companhia se mudou para esta merda. Não se enturmava com o grupo porque gostava de absorver o que as pessoas tinham de melhor.

Só assim julgava que se aproximaria.

— O veneno do vice chefe é perigoso – disse-me ele bem sério –, pois destrói a pretensão da afirmação de qualquer um. Ele cheirou ameaças de pessoa mais jovem e bonita como você. Fez o óbvio. Então te empurrou, seu bobo!

Reagi como se tivesse gostado do conselho.

— Por que você me fala justamente agora? Se achou absurda a atitude dele, não acha que os pêsames vieram tarde demais?

— É que também ele jogou meu brio lá embaixo.

A medida em que ele falava, mais curioso ficava. Então me virei, lentamente. O homem era, na verdade, uma pessoa de alta estatura e usava roupa que se parecia com o ambiente onde eu estava. Ele usava roupa cinza.

— Não se assuste comigo, pois gosto de me vestir assim. Chamar a atenção tem seu preço, e é o que não tenho agora.

Ficamos conversando por muito tempo. Quando percebi, só restava eu no escritório. O expediente havia acabado há quase duas horas!

O cara era realmente bom de conversa, pois eu não cansava de ouvi-lo. Lembro-me muito bem da última palavra:

— Eu acho que o espertinho se aproveita da pinta de galã de olhos azuis, como ouço das mulheres aqui, para pisar nos adversários. O escorpião sabe utilizar bem das armas de que dispõe.

Ele viu que você era um adversário de pouco valor, mas um adversário. Pessoas assim merecem ser descartas logo. É o que ele parece pensar.

As revelações do desconhecido me trouxeram mais ódio contra a figura da mesa oval. Por outro lado, minhas pupilas brilharam quando ouvi revelações, semelhantes às que se passavam na minha mente, na boca de alguém.

Duas vítimas não mortas são armas ainda vivas, pensei.

Antes de ir embora, ele me disse que tinha encontrado a revide. Se eu estivesse interessado, eu devia procurá-lo na saída.

Descobri na saída do prédio que o sinistro ser se chamava Sabugo. Nome muito estranho, é verdade, porém bem condizente com a roupa que usava. Mesmo assim, a atitude, os modos de se expressar, a firmeza na voz, tudo nele era de uma objetividade sem igual, inclusive no conselho:

— Não se deve ter pena; assim que aparecer, empurra o todo-poderoso quando ele estiver passando sobre a escada de acesso exclusivo ao escritório dele. Nem ele nem a secretária vão te ver, pois, do lado, tem uma porta de incêndio que leva a outras saídas.

A sua sorte é que há uma outra saída, disse-me batendo nas costas e pegar um táxi, automóvel que parecia também sombrio, de uma cor escura como a noite.

Lembro-me, porém, da sentença anterior proferida por Sabugo:

“Ele jamais vai se recuperar de uma contusão do joelho que sempre reclama. Todos sabem do problema porque o falastrão faz questão de dizer que é craque de futebol.

A próxima novidade que ele contará é que vai trocar as duas pernas por quatro de uma cadeira de rodas. Será um homem inválido cujas mulheres olharão com pena, e não mais com admiração.”

Peguei meu fusca velho, mas o barulho do escapamento do carro não me incomodava tanto quanto a indagar-me: Mas por que tinha que ser eu?

Não encontrei a resposta, de imediato.

No dia seguinte procurei ansiosamente por Sabugo. Remexi todos os recintos da empresa, mas não o encontrei. Também tive medo de perguntar por ele. Não sabia porquê.

Encontrar Sabugo era tão difícil quanto ver a lua cheia nestes dias de céu nublado.

Os dias se passaram. Já tinha desistido quando senti um leve tapa no ombro:

— Olhe amigo, eu já me contentei com o insulto do cara. Quanto a você, porém, a expressão do seu rosto me faz crer que não. Alguma coisa me diz que você ainda morde os lábios. Só esta manhã você foi várias vezes à janela; colocava e tirava as mãos dos bolsos da calça.

Arregalei os olhos.

– Como você sabe? Procurei você por todo o lugar e não tinha te encontrava. Agora você reaparece como do nada. Onde você estava?

Outra vez a objetividade apareceu bem rápida:

— Não me observou porque os seus olhos eram para o desgraçado vice chefe. Isso é certamente uma atitude de quem está com um espinho na garganta. Espinho grande de peixe, não do pé de limão.

É preciso arrancar o espinho para fora, antes que você se sufoque pela boca. Até coisa pior pode acontecer.

Não sei como ele me convencia tão rápido.

— E você não faz nada?

— Bem, além do que já falei, posso ficar expiando a aproximação do vice chefe da escada próxima ao escritório dele.

Pela primeira vez fiquei indeciso com meu amigo. Não sabia se acreditava. Na verdade, tinha momento que eu dispensava essa exigência.

Mas agora bem que seria necessário. O óbvio de novo aconteceu. Ele me de novo a falar sobre si. A expressão com as mãos e a fala firme, por outro lado, me faziam crer que compartilharia de minha vingança.

Cada passo que eu daria, podia ser cada passo que ele estaria dando. Por outro lado, jamais pensei em usar da violência contra alguém. As mãos de uma pessoa são para construir a felicidade, e não dispor do contrário.

Acabou que o meu ódio venceu o medo. Se as pessoas soubessem, não causaria ofensa a ninguém. Aceitei os termos da vingança, desde que o enigmático companheiro não me desamparasse.

O novo dia chegou bem rápido, pois tinha tentado passar a madrugada tentando me arrepender. É melhor se arrepender na fase embrionária do que na fase de parto. Pois, depois, tudo é mais difícil. É na fase de parto que muitos não resistem e se destroem.

Certamente que a juíza de todas as horas perseguirá a mente perturbada como a perseguição dos espermatozoides contra o óvulo. Nem mesmo a leitura do “subtítulo da vingança” de Mateus 5 me fez voltar atrás. Deixei Cristo e o remédio para outra hora.

Se tem uma coisa que não devia haver é arrependimento por desonra. Maltratar uma pessoa na frente de todo mundo, é semelhante ao que a lavandeira faz com a roupa. Lava, lava até ficar limpa. Ele me levou a lavanderia para eu ficar limpo. Eu não precisava da limpeza porque eu não pedi.

Se eu peguei a resma de papel, não tinha porque reclamar. Contudo, sou uma pessoa cujo brio está lá embaixo. Ou continuo indo à janela ou então o safado vai me substitui na horrível paisagem que sempre detestei.

Quando cheguei à firma, por acaso encontrei o vice chefe subindo bem devagar às escadas. O cantor não olhava para trás. Ele segurava a maleta que com certeza devia ter os nomes das mulheres que ele já agarrou ali na empresa.

Realmente era boa-pinta, por isso se exaltava perante os anões, como eu, ou perante os de tamanho semelhante, como Sabugo.

Assim que ele subia as escadas que davam acesso ao seu escritório, olhou para trás, pois eu havia tropeçado. Não se assustou. Ao contrário, não se conteve de rir ao olhar para meus olhos.

O mínimo de misericórdia que eu reservava como pessoa tinha evaporado naquele momento.

A revolta cresceu de maneira tal que avencei sobre o cretino, puxando-o pelo paletó. O vice chefe rolou as escadas. Assustado, me aproximei. A cabeça do desafortunado estava sangrando. Mesmo assim, ele me puxou pelo colarinho.

Ao invés de correr, gritei.

O grito me fez acordar. Chateei-me, pois, era apenas um sonho. Como o sonho faz a gente se frustrar! Mesmo assim, todo o meu pijama estava molhado. Revoltei-me mais ainda quando olhei para o relógio.

Já era mais de oito horas da manhã, e o vice chefe possivelmente já tinha chegado. Eu estava atrasado. O plano daria errado.

Uma mensagem no celular vinda possivelmente do Sabugo dizia para a gente se encontrar no galpão de computadores velhos.

Cheguei e já estava me esperando.

— E aí, você conseguiu sobreviver à noite?

— Nunca estive tão bem quanto hoje. O idiota de pernas tortas vai ter que pagar pelo que fez! A repugnância é um crime hediondo, embora, creio eu, não esteja na lei.

— Finalmente, sinto que as suas palavras proveem de um homem que parou de ir à janela.

Após combinar os detalhes, despedimo-nos sem apertar as mãos.

A manhã toda voltei a praticar a minha nova mania. Desta vez a ida à janela foi bem superior aos das outras vezes. As ideias esquisitas, repentinas, de pular dali para baixo realmente seriam dar munição ao vice chefe.

Como a autoridade ia rir da minha desgraça! Um prêmio conquistado sem muito esforço. Olhando o abismo agora, quem devia cair era o pilantra.

O telefonema do Sabugo interrompeu meus pensamentos. Disse-me que não ligara antes porque o chefe tinha se atrasado, mas que, agora, o insolente já tinha estacionado o seu Audi de quatro canos no estacionamento privativo. Pediu para que eu fosse para o lugar combinado imediatamente.

A palpitação sanguínea palpitava semelhante a batida de um tambor. Não me via usando da violência para obter êxito. A circunstância nova, infelizmente, exigia uma coragem que eu nunca tive.

Usei de todas as precauções para que ninguém me visse. A palpitação sanguínea que subira agora a pouco, tinha desaparecido. Eu estava tranquilo. Será que a frieza dos piores elementos que a polícia lida todos os dias tenha se apoderado de mim? De qualquer forma, eu me sentia outra pessoa.

Ainda encontrei com Sabugo. Ele falou que o hábito do vice chefe era passar pela solitária escada privativa, antes de chegar ao escritório. Eu me escondi detrás da porta de incêndio.

Minutos depois ouço passos e assovios. Era o grandalhão que aparecia invadindo o espaço onde se achava insuperável. Que ódio o ver se agigantando diante de meus olhos cantando! O chato certamente está cantando porque confiava que era sempre um vencedor. Você merece morrer, seu desgraçado!

Pouco tempo depois, não me contive e gritei, assim que o cantor deu as costas para mim. Assustado, desequilibrou-se, rolando escada abaixo. A cena não me amedrontou. Não tive pena do mesquinho chefe.

Mesmo assim, me aproximei. Vi que saia bastante sangue da sua cabeça. O vice chefe estava imóvel. Repentinamente a a aparência assumiu a feição de um morto, pois nem mesmo a respiração se ouvia.

Agi com naturalidade ao sair da cena do crime. Com tanta naturalidade que, curiosamente, não tive saudade do Sabugo.

Os dias se passaram e não tive a coragem de procurá-lo. Pelo contrário, não queria me encontrar com ele. E se ele me denunciasse à polícia?

Para minha surpresa, o fim do poderoso foi aceito com muito convencimento pela polícia. O atlético vice chefe escorregara nas escadas, e a batida da cabeça no último degrau foi o responsável pela sua morte. A fatalidade ocorre no trabalho.

A euforia foi tanta que procurei Sabugo para compartilhar da vitória. Um colega me disse que não trabalhava ninguém com esse nome na firma. Dei todas as descrições possíveis, inclusive a de que ele tinha mais de um metro e noventa de altura e usava uma roupa camuflada conforme a cor do ambiente.

A resposta, entretanto, era sempre a mesma. Meus olhos não podem ter se enganado. Por muito tempo fiquei lembrando das conversas com Sabugo. O único consenso que que é conversei com ele. Para mim nada era mais cristalino do que a razão.

Ocorre-me, contudo, o pensamento que temo: talvez Sabugo tivesse ido embora após ter me usado. A vontade era matar o vice chefe.

Por outro lado, pode ter ocorrido outra hipótese. A velha e conhecida paisagem que vejo daqui de cima. Pensando bem, a paisagem é bem mais feia do que eu imaginava. Parece que se contorce e ganha vida em meus pequenos olhos.

As cores cinzentas e uniformes, o cheiro fedido do cocô dos pombos, o barulhento ar condicionado, tudo parecia, inexplicavelmente, apontar para meu obscuro amigo Sabugo.

Voltei mais tarde para espiar o ambiente. Aquelas paisagens tinham alguma coisa que eu ainda não tinha captado como agora. Parece que vi Sabugo saindo de todos os buracos que se possam ver em um sabugo de milho.

 

Brasília, DF, em 3 de dezembro de 2017.

‎A mania. Narrativa de Bomani Flávio