Arquivo para Tag: +poemas +contos +blog

Posts

quem sou eu

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Além da certidão de nascimento,

E de outros registros oficiais,

Eu ainda não sei quem sou,

Quem eu seja,

Nem quem em breve serei.

 

Com meus trinta anos de idade,

Talvez mais, talvez menos,

Somente agora me convenci quem eu sou.

Não sou exclusivamente uma certidão de nascimento,

Nem exclusivamente outro documento público.

Muito mais o rosto que vejo no espelho.

 

Sou também as fotografias,

Que tiram, às vezes, contra minha vontade,

Em cliques imprevisíveis,

Que mostram, em lapso de segundo, como sou.

 

Mesmo assim, eu ainda não sei quem sou.

Porém, ao acordar hoje de manhã,

Percebi que posso ser o registro particular,

Tais como o bilhete,

O relato no diário.

Meus relatos nas redes sociais.

 

Às vezes muito mais difícil de lidar

E que, por algum motivo,

Pode levar a criar mais um registro,

Entre tantos que já tenho.

Não sei se será fardo ou sujeição,

Porque, quando sou eu, às vezes me assusto,

Os outros se apavoram

E muitos choram.

 

Retraio-me como um caramujo quando não bem-vindo.

Preciso, na verdade, aprender com os fatos e atitudes

Que levam a algum tipo de inteligência,

Entre tantas disponíveis.

Como a emocional, a artificial.

Dizem até que há a competitiva ou a múltipla.

 

Preciso ser, na verdade, eu mesmo.

Bem próximo ao que a divindade disse a Moisés,

Nas distantes campinas do deserto:

“E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU.”

A divindade sabia quem era.

Disso não duvidava.

 

Preciso ser.

Mas, no momento, deparo-me com três pinturas invisíveis,

À minha frente:

Quem eu sou,

Quem eu seja

E quem eu serei.

Somente sei que os registros oficiais são oficiais.

Quem eu seja,

E quem eu serei,

Estarão nos registros particulares,

Que podem criar outro registro oficial.

 

Eis a felicidade ou a minha tristeza.

Certo é que eu ainda não sei quem sou.

Porém, pensando bem,

Sou, na verdade, um registro,

Pendente de juízo crítico.

Quer dizer, uma inteligência desconhecida,

Perdida em um País distante no mundo,

Perdida em uma bela capital distante no mundo.

 

Brasília, DF, em 11 de outubro de 2017.

Quem sou eu? Poema de Bomani Flávio

entardecer
Viração do dia.

É na viração do dia

Que costumo ir para o balanço

Da minha desgastada rede,

Onde procuro ansiosamente resgatar o dia

Que se foi.

 

Balanceio-me suavemente para viajar no tempo.

Ambiente que conheço, porém perdido,

Por causa das rígidas leis da natureza.

 

Assim, desligo as luzes da varanda

Para as trevas mais cedo chegar.

Porém, de tanto balançar, após algum tempo,

Constato a esperada realidade:

Não consegui recuperar o dia que se foi.

O esforço foi em vão.

 

Não devo, não devo chorar.

A frustração não vai ajudar.

A impotência ganho não me dará.

 

A verdade é que não se recupera o tempo perdido com choro,

Nem se acha o tempo que se foi com o balançar de uma rede.

 

Posso balançar quantas vezes quiser,

Mas a viração do dia em nada recuperará o tempo que se foi.

Percebo, porém, que meu estranho ritual diário tem conquistado minha vira-lata,

Que late, com expectativa, quando estaciono o carro na garagem,

À espera da hora da rede.

 

O tempo com minha cadelinha,

Que gosta de ficar embaixo da rede logo que balanceio,

Recupera, de alguma forma, o instante de tempo que se foi.

 

Mas vejo também,

Escondida sobre o vazio vaso de planta,

Minha galinha pretinha,

Ansiosa para chocar.

Fica ali dias.

Testemunha silenciosa,

Do balançar da rede.

 

Todavia, o tempo perdido, que vivenciei vinte e quatro horas,

Ao longo do dia que se foi,

Jamais recuperarei.

Nunca conseguiria dobrar as indobráveis leis físicas,

Em qualquer passagem de tempo.

 

Mas é na viração do dia que estão os mistérios da vida.

Fronteira do dia que se foi e da noite que chega.

Instante que encanta e cega, que é o próprio tempo que se foi.

 

Brasília, 06 de outubro de 2017.

Viração do dia. Poema de‎ Bomani Flávio.

destino
Meu destino.

Bem dentro da gaveta do escritório está meu destino.

Pela primeira vez pude vê-lo assim tão perto.

Em carne e osso.

Li coisas absurdas.

Demorei a acreditar.

Para ser contra eu mesmo.

Assim eu chego lá.

 

Não foi surpresa o estranho modo de se expressar.

Tomou a forma de papel escrito em péssimo português.

Que coisa, joga sujo.

Pensava, porém, que jogava bem.

 

Engana-se quem ache que seja alguém do outro mundo.

Ele é simplesmente a outra cara da moeda de um real em minhas mãos.

Mas lá, naquelas letras estranhas,

Pescadas de um baixo mundo que ninguém sabe onde fica.

Estou hipnotizado.

É o seu poder mortífero,

Pois a ovelhinha me abalou como um tremor de terra.

Só que, sob o meu poder, porém está.

 

Gritar.

É isso que eu devia fazer.

Gritar bem alto.

Olha pessoal, o papel digitado é meu refém.

Coisa rara para qualquer um.

Posso fazer o que quiser com a vítima.

Molhar, rasgar.

Qualquer coisa, menos deixar fugir.

 

Lembro, porém, que o papel é sujo.

Vai me denunciar.

O destino está sujo.

A gaveta está suja.

A poucos centímetros da mão que não quer jogar a peste fora

E perto também dos olhos!

É melhor eu rasgar o papel.

 

Mas desisto.

O papel é meu retrato.

Traduzido estranhamente para o papel.

 

O destino estava nas minhas entranhas.

A lei da árvore da ciência do bem e do mal.

Germinando como toda semente de uma árvore.

 

Brasília, DF, em dezembro de 2002.

Meu destino. Poema de Bomani Flávio.

flor vermelha
A flor vermelha.

Muita chuva além da janela.

Como não lembrar?

Não tem como esquecer!

Lembrar-me da recente morte da flor vermelha,

Que resgatei do chão,

No caminho da previsível corrida,

De ontem de manhã.

 

Flor pisada!

Rosa encharcada!

Tanta água para minúscula criatura,

Abandonada em tão breve vida!

 

Paixão, amor, desejo e destruição.

Ingredientes regados a vinho tinto por uma flor vermelha,

Arrancada de sua próspera terra,

Para testemunhar o esperado possível,

Que virou o impossível,

Como a chegada de um tremor.

 

Pobre flor!

Encheu-se de uma felicidade enganosa,

Mas morreu tão desfigurada,

No trincado copo esquecido da minha cozinha!

 

Olho novamente a intensa chuva pela janela,

Mas não esqueço da pobre rosa vermelha.

Enterrada, agora a pouco, no encharcado lixo orgânico,

Que havia sobre a minha pia.

 

Preciso voltar a correr

Por amor, paixão e desejo,

Mas sem imprevisível destruição.

 

Testemunha já não quero ser.

Sentença que acabo de receber,

Logo após desfazer-me do outro lixo.

Daquele trincado copo da cozinha.

 

Resta-me senão ignorar as chuvas que me paralisam

Para a corrida voltar.

Meu coração certamente irá bater,

Caso outra rosa achar

E dela, com falsa esperança, cuidar

De irrecuperável dor que não fiz.

 

Brasília, 5 de outubro de 2017 às 20:54

A flor vermelha. Poema de Bomani Flávio.

oceano
O oceano.

Há um oceano,

Entre um dia e outro,

Do tamanho do Atlântico,

Que nos impede de voltar

Ao dia anterior.

 

Quanto mais se passam os dias,

Quanto mais cresce sua imensidão.

Não adianta chorar,

Nem lamentar,

Pelo dia anterior.

 

Resta olhar para frente

Como aquele avião que se vai.

Para travessia sem fim.

Ilusão que satisfaz e engana.

 

Mas o dia posterior também é de assustar.

Pelos menos há rios e lagoas.

Talvez menores,

Para avançar.

Se não se pode voltar,

Medo não se pode ter para avançar.

 

Vastidão como esse,

Tão grande assim,

Ninguém esquece.

Nasce com ele,

E morre assim.

 

Talvez algum dia a geografia mude.

Ele de vez apareça.

Sempre virá do dia anterior,

Onde sempre foi seu lugar.

 

Há um oceano,

Entre um dia e outro.

Cresce, porém, dia a dia,

Para assustar você.

 

Oceano indomável.

Embora tão grande,

Quase ninguém vê,

Nem percebe.

 

Quando se nota,

Sobram as rugas.

Terríveis rugas do envelhecer.

Tatuagens de um dia que se foi.

Mistério que ninguém explica.

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.

 Oceano. Poema de Bomani Flávio.

seca

Estiagem de chuva no quintal.

Haverá dia em que terá tristeza,

Imensa Tristeza,

Pela intensa chuva que passou,

Mas não deixou cair uma gota d´água sobre seu quintal.

 

Ficou tão estarrecido,

Talvez até doente,

Que a estiagem de chuva no quintal assombrou você.

 

Seara que dói por algum tempo.

Às vezes por longo tempo.

Dor sobremaneira,

Para quem ainda não experimentou longo tempo de estiagem.

 

Quando for assim,

Não tenha inveja da água,

Que caiu sobre o quintal do vizinho,

Mesmo que tenha sido abundante.

 

Pois, em época de estiagem de chuva,

De extrema estiagem,

Nada melhor do que apreciar o céu estrelado sem fim.

De preferência, deitado em uma rede,

Para refletir sobre os solavancos da vida,

Os quais não terá resposta pronta e rápida.

 

Tudo parece sem fim neste mundo!

Inclusive a estiagem!

Inclusive a resposta!

 

São as medidas incertas que servem para medir

O que ainda não foi medido,

Pela brevidade da vida sem fim.

 

Mas um dia a estiagem vai passar

E a água, se não cair em seu quintal nas próximas estações,

Pelo menos tenha fé que caia ao menos uma gota d’água,

Que pode, surpreendentemente, revitalizar o seco quintal.

Principalmente porque chuva e estiagem são paisagens,

Que, ao longo da vida, você enfrentará.

 

Pois o quintal é o seu quintal.

Em época de estiagem,

De extrema estiagem,

Os olhos devem sempre mirar o céu,

Na esperança de mudança de paisagem.

 

Brasília, 3 de outubro de 2017 às 11:51

Estiagem de chuva no quintal. Poema de Bomani Flávio.

aguia

Pandion.

Ele havia vestido a samba-canção para dormir quando ouviu um assobio estrondoso naquela noite em que a lua havia sumido por causa das baixas nuvens da primavera que virou outono.

Ansiosamente desligou a luz do abajur e espiou pelo vitrozinho a paisagem escura. Com a janela aberta, o som inquietava mais ainda os ouvidos.

De onde teria vindo a sinfonia do demônio que apareceu para atrapalhar o sono tão debilitado pelo atípico clima seco e calor de mais de trinta graus? Fechou o vitrozinho.

O misterioso som era mais impetuoso que os estranhos graves e agudos produzidos pela cigarra, inseto da família cicadoidea, que se espalha rapidamente com a chegada da primavera.

Um medo se apossou. Olhou para esposa que roncava suavemente e ficou surpreso porque ainda não tinha acordado.

Também não teve vontade de acordá-la uma vez que as aulas matutinas com as crianças da primeira série realmente tiravam o sono da lindinha de cabelos grandes e morenos.

Finalmente achou melhor acordá-la. Precisava compartilhar a funesta notícia com a querida.

Quando ia tocá-la, a orquestra solitária acabou o canto bizarro repentinamente. Será que o bicho morreu de tanto assobiar? A noite voltou a ficar calma como de costume.

Mesmo assim o medo não passou. O copo que a esposa geralmente levava com água para o quarto estava sem nenhuma gota de água.

Fez menção de jogá-lo contra a parede. Conteve-se. Precisava tomar água para se restabelecer do susto. O ouvido escutou bem a enigmática melodia.

Quando chegou na cozinha, abriu a geladeira. Bebeu todo o litro de água gelada. A água, contudo, não conteve a tremedeira. A sensação de pavor não se dissipou.

Olhou para o relógio de parede, que anunciava oito horas da noite. A noite mal havia chegado e recebia como presente o som de outras terras. Talvez o som do diabo.

A sua mãe tinha razão. A ideia de morar em região semiurbana era perigosa. Lembrou da cachorrinha Fifi cujo latido ainda não ouviu.

Nestas horas ela estaria arranhando a porta de madeira da cozinha como sinal de fome ou de companhia. Pensando bem o silêncio da cachorra talvez venha do medo do extraordinário som.

A explicação não convenceu porque a cachorrinha era valente. Ela enfrentaria qualquer animal. O silêncio da sentinela da casa prenunciava desgraça.

De qualquer forma, ficou até mais tarde assistindo televisão. Reportagem de jornal mostrava muitas cidades dos Estados Unidos sob neve. Surpresa lá e surpresa aqui, em que a escuridão, crescente, se contrastava com o branco mostrado pela televisão.

Não resistiu ao sono. Dormiu ali mesmo na sala.

Sob pesadelo, acordou mais tarde. Ouvia os mesmos sons estridentes de horas atrás. Desta vez o som era tão incomodo quanto milhares de cigarras juntas. Atravessava as inúteis portas e janelas atingindo os tímpanos do ouvido.

Escondia as orelhas entre as almofadas, mas a atitude se tornara insuficiente.

O barulho parava por momentos e retomava com mais força. Não sobrava mais paciência.

Desligou a televisão e foi à cozinha. Precisava achar a lanterna. Estava decidido a descobrir o ator do inigualável som.

E se for realmente um bicho, um bicho grande como um homem, teria forças para lutar? Se fosse em época chuvosa, certamente que teria, pois o corpo reagia bem ao clima úmido e ensolarado.

Ganharia energia e ficaria mais esperto até mesmo para o sexo abundante com a esposa. Não seria um homem de trinta anos capenga de disposição. Olhou para o relógio novamente.

Duas horas da manhã! Pôs as mãos de novo sobre os ouvidos.

Os sons, contudo, foram enfraquecendo, até sumirem.

Voltou ao quarto. Observou a esposa que continuava dormindo e teve pena de acordá-la.

Daqui a três horas a pequena vai levantar e sair às pressas para o trabalho. Resolveu não acordá-la. Vestiu o roupão preto de banho. Faltava, porém, algo. Faltava um facão que estava na salinha de ferramentas, próxima da cozinha.

Após pegar a peça, achava-se pronto para vasculhar o quintal.

Com certeza, pensou, o movimento que fez de dentro reprimiu o sumiço dos sons. Não desistiu, no entanto, da ideia de ir ao quintal. O quintal era seu mundo predileto, pois gostava de cuidar das plantas e da horta. Tinha três mil metros quadrados de área.

Assim que abriu a porta de visitas, sentiu um jato de calor sobre o rosto pálido. A temperatura quente realmente enfraquecia sua energia. Nem para carregar o facão tinha forças. O facão pesava no braço. O ideal seria uma arma.

As folhas das árvores não balançavam. Meio trêmulo começou a revistar. Foi ao portão da casa onde tudo parecia normal. Caminhou paralelo ao muro e nada de anormalidade.

Visitou o galinheiro e, na entrada, se assustou com algo terrível. A galinha que havia comprado na feira estava entrelaçada. Esqueceu de fechar a portinha! O terror continuou.

A cadelinha Fifi também estava morta! A cabeça tinha sido decepada.

O monstro havia comido o restante do corpo. Os olhos estavam tão dilacerados que parecia que haviam visto um ser apavorante. Não havia sangue por perto. O monstro estava com muita fome.

Novamente o medo se apossou. O devorador comia em silêncio! Quem estava entrando em seu mundo? Aqui sempre foi seguro. Segurou bem o facão na mão esquerda. O corpo estremecia.

O assassino estava por perto. Tinha uma coisa a fazer. Correr rápido para dentro da casa e chamar a polícia. E correu, mas tropeçou em uma pedra.

Aliás, tinha esquecido daquela merda que servia para contemplar o galinheiro quando abrigava a galinha. A luz da lanterna se apagou com a pancada. Quando caiu, o enigmático barulho reapareceu com intensidade de causar surdez.

A lua que havia sumido reapareceu com um brilho muito singular. As nuvens opressoras se dissiparam. Tudo havia se tornado claro. Podia-se distinguir qualquer vulto em poucos metros. Ouvia-se barulho de bater de asas muito forte. Pensou nas asas do demônio.

À noite o demônio possui asas. Percebeu que uma ave sobrevoava a sua cabeça. Pouco depois disso, finalmente seus olhos detectaram o ladrão do sono e dos animais. Os olhos detectaram uma ave muito grande e assustadora.

Com o contraste da luz da lua, o bicho parecia fantasmagórico.

Que ave era aquela? O barulho que ecoava era de atemorizar qualquer ouvido. Protegendo-se com asa mão, reunia forças contra as garras do mal lutava contra o maior pássaro que viu.

A luz da lanterna, antes de se apagar, possivelmente acabou cegando momentaneamente o pássaro que bateu com violência contra o poste de vôlei. A ave caiu no chão. O impacto levou-o a acreditar que a intrusa havia morrido.

O som estridente parou instantaneamente com a queda do opressor. Vendo o algoz imóvel sobre o solo, achou-se possuído por um sentimento de vingança. Procurou o facão. Logo que pegou a peça que brilhava com a luz da lua disse adeus à intrusa.

Estaria vingando a morte da cadelinha e poupando os ouvidos.

Enquanto fez o gesto de enfiar a ferramenta contra a ave, ouviu uma voz firme rasgando o silêncio da noite. Olhando para a casa, viu um lindo vulto de branco, com os cabelos soltos.

A esposa pedia para que desistisse da ideia. O veterinário é o último a matar qualquer animal. Ela usou o lema que ele, naquele momento de desespero, havia esquecido.

O ódio leva a gente para trás, pensou. A esposa tinha razão. Se a ave morresse, a filosofia de proteção aos animais perderia crédito.

Quando olhou para a ave, ela se movimentava. Esqueceu o ódio. Um sentimento de caridade levou-o imediatamente a salinha de ferramentas. Pegou uma rede de pesca, lançou-a sobre o animal para que não fugisse. Acoberta pela teia, colocou-a no galinheiro com muita dificuldade.

Amarrou os pés e as asas. Colocou uma focinheira no bico. A ave era mais forte do que qualquer uma que havia segurado! Massageou suavemente o pescoço do bicho.

A luta para pôr a fera no galinheiro tinha desvanecido as forças.

Devagar o sol saía no horizonte. Exausto, foi para a cama. Não percebeu o beijo de despedida da esposa.

Ele, porém, não dormiu muito. Quando se levantou, foi ao galinheiro. O sol de dez horas não dissipou a surpreendente névoa. A noite não havia terminado, mas o clima melhorou um pouco.

Ele respirava com menos dificuldade. Não tropeçou em nada, mesmo a penumbra abundante das nuvens. Sentiu temor ao se aproximar do pássaro.

O pássaro estava a sua frente. Tinha olhos perspicazes. Admirava-se, não obstante, com a grandeza da fera. De onde tinha vindo a ave do demônio? Por que ela resolveu fincar tenda em seu terreno?

Aproximou-se. Tocou-a com receio. O diagnóstico rápido não constatou ferimento, mas o pescoço estava inchado. Ela tinha uma exuberante faixa no peito semelhante a um colar castanho.

Com cautela, tirou a focinheira do bico. Qualquer descuido, o pássaro podia contra-atacar. Pronto. O bico da fera estava livre. Retornou a casa, tomou café, mas não ouviu o assobio esperado.

O contato com a exuberante ave, não obstante, fez esquecer o ódio pelas perdas recentes. O seu rosto ganhou um brilho inexplicável. Recolheu o rosto dos animais mortos sem nenhuma lamentação. Não parecia o homem carrancudo dos últimos dias.

Também não precisou do psicólogo que a esposa tanto cobrava.

Desistiu de trabalhar naquela tarde. Telefonou ao chefe para comunicar a falta. Voltou de novo ao galinheiro. Perdeu uma galinha chocadeira, mas ganhou um pássaro de assas enormes. Que tinha aquela ave que, em pouco tempo, mudou sua disposição mental?

A ave realmente irradiava-lhe felicidade, pois a esposa percebeu mudanças. Ela recebeu flores quando saiu do banho. Fizeram sexo. Quanto tempo sem sexo!

Intrigado com a majestade de hóspede, ele telefonou para um amigo, especialista em aves da Universidade de Brasília. Quis saber a origem do pássaro. Será que era uma ave de outro mundo? Dias depois, recebeu pessoalmente o parecer do amigo.

O pássaro era uma autêntica ave migratória. O professor disse para ficar tranquilo. A ave não trazia doenças que atingiam as aves da Ásia e da Europa. O falcão vinha dos confins dos Estados Unidos ou do Canadá.

Jalilal contou para a esposa as notícias sobre o falcão. Se a ave permanecesse nas regiões de gelo, de onde tinha vindo, morreria. A comida ficaria escassa nas regiões nativas. Os Estados Unidos estavam sob neve. Havia pouca comida.

Na medida em que os dias passavam, crescia a obsessão pelo novo amigo. Jalilal o pássaro como uma ave. Via-a como uma psicóloga. A linguagem do pássaro é a linguagem sem limites, pensou. Se o pássaro estivesse obedecido ao limite das fronteiras, o transtorno não teria ocorrido.

Jalilal retornou ao galinheiro. Chegou a uma ideia. A ave era mais aventureira do que ele. Ela possuía um ímpeto que ele não tinha. Ela voou milhares d quilômetros para a sobrevivência. Desprezou distâncias. Ela sonhava com o pantanal. Sonhava com os Pampas. Sonhava com o cerrado.

Ele apalpou seus braços, incapazes de atravessar uma piscina olímpica. Se fosse fazer uma troca com a ave, não teria condições de físicas para buscar as colinas nativas do Pandion. A sua saúde mental melhorou por que sentiu, por meio do pássaro, que há um lugar onde poderia recuperar a saúde.

Jalilal olhou para a garagem. O Volkswagen popular foi comprado a prestação. Constituiu a casa com empréstimo de banco. O primeiro filho estava para nascer. Muitas dívidas para pagar. As leis para cumprir. A confusão se instalou na cabeça.

Não podia haver uma troca. Restava ficar preso ás teias criadas para prendê-lo.
De repente ouviu um assobio da águia. O falcão assobiava desesperadamente. A noite ficou insuportável. A lua voltou a ficar escondida sob as nuvens.

A esposa acordava a cada momento, pedindo para que libertasse a coitadinha senão morreria no galinheiro. A vizinhança podia muito bem denuncia-los ao órgão ambiental. O galinheiro era pequeno para o falcão. A esposa mais uma vez estava com razão.

Se o galinheiro era pequeno para a estirpe de um Pandion, o mundo também era. O falcão não tinha viajado ao Brasil para ficar preso. Ele viajou para a liberdade. Para a fartura da comida.

O assobio constante do falcão porém, foi lhe causando tristeza. A felicidade estava indo embora. O falcão era independente. Não precisava das regras do galinheiro. Nem também das regras dos homens.

O falcão assobiava de novo. Jalilau percebeu que sua alegria foi em troca da tristeza da ave. Era preciso libertá-la. O cativeiro causava a morte. Se não causava a morte, podia desnaturalizá-la.

Jalilal abriu o vitrosinho do banheiro pela última vez. Não tapou os ouvidos. O som da ave se tornou intolerável. Chega de pássaro! Chega de Pandion!

Desceu às escadas. Foi à cozinha. Pegou a arma que havia comprado na feira clandestina. Hoje resolveria a liberdade do triste cantor. Dirigiu-se ao galinheiro. Ele não viu a esposa que o acompanhava em passos tímidos.

Quando entendeu a intensão do marido, implorou para que não fizesse mal a ave.

Assim que Jalilal se aproximou do galinheiro deu um tiro seco e definitivo contra a jaula. O tiro quebrou o cadeado da porta. Abriu a portinha. O pássaro estava livre para voar. Á águia resistiu a sair. Ao olhar de novo, ouviu o intenso bater das asas.

O galinheiro estava vazio. A águia pesqueira tinha desaparecido como um morcego na noite sem lua. O silêncio voltou a dominar o quintal. Todos os dias ele ia ao galinheiro. A portinha estava sempre aberta. O último ocupante não voltou.

Decepcionado, acabou criando um ritual. Entrava no galinheiro. Fechava a portinha.

O cheiro que ainda exalava do falcão tinha desaparecido. É bem capaz que a esposa achasse que a depressão tinha voltado. Jalilal olhava para o céu dirigindo o carro. Parou o automóvel no sinal vermelho.

Antes de chegar ao trabalho, o habitual engarrafamento. Bateu a mão sobre o volante. Queria ser igual ao falcão. Ser independente.

 

Texto publicado originalmente no livro de antologia
da VI Mostra de Talentos do TCU – 2007. 

 

Brasília, DF, em 03 de outubro de 2017.
Pandion. Narrativa de Bomani Flávio

Olhar de cachorro
Olhar de cachorro.

Olhar de cachorro.

Que olhar é esse,

Que se impregnou em meu rosto,

Como um calmante?

Será para me convencer,

Que eu preciso melhorar o olhar?

 

Porque talvez seja para afastar o medo,

Que tem me impedido de olhar.

Pois, com o olhar de cachorro,

O medo não chega perto,

Se o objeto do olhar for além do que se deva olhar.

 

Mas, no olhar de cachorro, o que importa é que se deve olhar.

Seja para qual horizonte.

Seja para qual pessoa.

 

Ainda assim, o que importa é olhar.

O meu olhar.

O seu olhar.

 

Contudo, após algumas décadas de nascimento,

A redescoberta do olhar de cachorro.

Simplesmente olhar.

Haverá o risco do rótulo de gay,

Que talvez acresce com o da prostituta da esquina.

Sabe-se lá mais o quê!

 

Mas, se não olhar, irei me acanhar.

Esconder-se por trás do olhar faz mal a si mesmo.

Pode ganhar rugas,

Que não caberão na roupa que usa.

O olhar, porém, tem que ser bem feito.

Para limpar as vistas, duplamente.

De quem olhar e de quem será visto.

 

Além disso, o olhar bem feito exala um perfume ainda não descoberto.

Olhar igual os cachorros fazem.

Conduta simples e básica,

Que começa no olhar.

 

Caso contrário, as pessoas se afastarão,

Se não olhar.

Possível que nasçam flores,

Que não são da primavera.

Iguais às que acabam de estremecer meu peito,

Com estranhas palpitações,

Vindas de um mundo,

Não tão estranho assim,

Perto do meu!

Abalo sísmico que sismógrafo nenhum vê.

 

Entretanto, durante todos estes anos,

A venda nos olhos afetou meu olhar.

Mas não vou lamentar,

Nem chorar.

Porque só preciso olhar,

Para, de algum modo, me achar.

 

Simplesmente olhar.

Igual os cachorros fazem.

Conduta simples e básica,

Para endireitar o olhar.

 

Brasília, 3 de outubro de 2017 às 11:45

Olhar de cachorro.  Poema de Bomani Flávio.