A caipirinha.
Se tivesse desistido da brincadeira de tomar o primeiro gole de caipirinha em uma festa com amigos, não teria gasto a manhã toda de hoje dentro do quarto escuro.
E o que é pior, deitado incansavelmente com os pés para cima. Como se tivesse sido deixado violentamente naquela postura sem vontade própria.
Saciar a curiosidade serviu apenas para se prender na teia de rede quando jogada no rio.
Mas nunca foi de beber bebida alcoólica. Muito menos caipirinha. Jamais, na verdade, foi a um bar.
Tomar um pequeno copo de bebida alcoólica não achou problema nenhum. Cada pessoa vive, a cada dia, para apreciar ou desvendar os segredos, e muito mais as maravilhas, que há por trás do paladar.
Ninguém vive para reprimir o que a própria natureza sabiamente deu a cada um. Bebeu semana passada e anteontem fez a mesma coisa.
Acontece, porém, que se surpreendeu com o sabor da bebida. A caipirinha é muito mais gostosa do que arroz e feijão. Muito mais do que qualquer peixe assado ou cozido que tanto aprecia.
O segundo copo que tomou ontem somente comprovou que seu organismo gostou. Miserável paladar que não devia provar!
Desde então não consegue se concentrar ou pensar em outra coisa senão na nova descoberta.
A experiência foi fascinante, mas o que sente na boca é igualmente pior. Se acha um peixe fisgado por um pescador.
Parece que ainda não foi puxado da água porque tem resistido igual a um peixe grande.
Mas as forças estão minando. O pescador parece muito mais forte do que ele; hábil no uso da isca e sente que está em todo o lugar.
A presença dele que se sente pela linha do anzol torna-se cada vez mais forte. Impossível de resistir.
Relutou e relutou. Desde ontem, entretanto, o que mais tem feito é evitar o terceiro e tantos goles que saboreia nos sonhos intermináveis.
Chorou, rezou, ajudou a mãe a limpar a casa, coisa que habitualmente não fazia.
Resistiu o quanto pôde, mas a força do pescador cresceu igual a incêndio na floresta nos últimos dias.
Sem alternativa, finalmente se convenceu a tomar outro copo da bebida. A média de um copo por dia com certeza não faz mal a ninguém. Precisava tomar para se acalmar. Jovem é jovem.
Por que resistiu tanto? Ah, a caipirinha é muito gostosa! Quem inventou a bebida poderia ter ganho um prêmio por ter feito bem a alguém.
Voltou ao bar com os amigos.
Desta vez, a placa de proibição para menor de idade na entrada do boteco não foi empecilho. Não era menor de idade, mas a aparência quase sempre incutia no segurança do estabelecimento entendimento diverso.
Como das outras vezes, o dono atendeu com cortesia. É certo que o pedido saiu tremido pois o coração batia mais descompassado do que de uma pessoa com arritmia cardíaca.
Quando o elegante barriga de navio, que vestia um terno escuro, trouxe o pecado e pôs na mesa, começou a sentir uma espécie de tremedeira.
O que há por trás do reluzente copo de vidro com cachaça, limão-Taiti não descascado, açúcar e gelo?
A contemplação chamou a atenção do dono do estabelecimento que fez cara de quem não se importava.
Parecia ver beleza no copo transparente com cascas de limão à mostra que via diante de seus olhos.
Mesmo tendo superado toda a vergonha e fraqueza para chegar ao local onde nunca deveria ter ido, sentia o coração bater como se fosse a primeira vez para consumir o produto.
Tinha motivo, porém, para o coração bater cada vez mais forte. Sentia como se fosse pescado por um anzol na boca.
Outra vez o anzol puxou mais forte. Coitado dos peixes nas águas, o anzol machuca demais!
A última puxada fez com que entendesse que havia um pescador, um algoz que se revelava cada vez que aproximava sua boca do transparente copo com caipirinha.
Ao contrário das outras vezes, sentiu vontade de beber a caipirinha bem devagar. No primeiro trago, fechou os olhos e deu suspiro de alguém muito sedento.
Saciou-se como um bebê que não via o peito suculento da mãe por muito tempo. Bebe bastante até se fartar.
Embora os familiares e os amigos não notassem mudança nenhuma visível, sentia-se, de alguma forma, encurralado. Tão encurralado como um peixe por um hábil pescador.
A atração pela nova namorada, ao que tudo indica, parecia sem volta. Não queria apenas uma, nem duas, mas tomar vários copos da bebida.
Sonhos frequentes têm sido uma luta. Via-se caído nas ruas, saindo embriagado do bar. Colocou na cabeça que havia um pescador atraindo-o loucamente para o anzol.
Estranhamente começou a ver beleza em um sujo bar perto de sua casa. Lugar que sempre falava que a vigilância sanitária tinha esquecido.
Preferiu conhecer as instalações à noite, escondido dos parentes e amigos.
Ao entrar no apertado recinto, que tinha uma velha sinuca no centro e homens maltratados jogando com cigarro na boca, sentiu uma enorme atração.
Na verdade, sentiu o cheiro de cuspe fresco que invadia o lugar insalubre pelos tocos de cigarros no chão e cuspe para todos os lados. As narinas detectaram novidade.
Como é gostoso estar em um lugar que proporcionam prazer para as narinas! Um lugar onde possa se sentir bem!
Sentou-se em uma cadeira no canto e, pela primeira vez, sentiu-se um arrepio que nunca tinha sentido antes. Queria ir além do copo, pois é além do copo que aparecerá o rosto do pescador.
Pediu o primeiro copo de caipirinha. A mulher entendeu bem as palavras ditas palavras por palavra. Ditas com autoridade.
A princípio, amedrontou-se, mas, ao contrário das outras vezes, não teria forças para fugir. Sabia que embriagar fosse a única maneira de conhecer o pescador que estava por trás do copo de caipirinha.
Quando o copo chegou, a admiração aumentou pela caipirinha. O copo estava tão reluzente quanto das outras vezes. A dona ficava de longe olhando o ritual do novo freguês, que abria e fechava os olhos.
De vez em quando fazia menção de que ia levar o copo na boca. Relutava o quanto pôde.
Mas havia decidido que queria conhecer o pescador.
Uma estranha voz, contudo, quebrou o silêncio. Dizia que no inferno não havia chamas, mas que no céu havia fogo do inferno.
Ao virar-se viu para ver quem tinha falado, viu homem bêbado, que tinha acabado de entrar no recinto, indo conversar com a dona do bar.
Após o bêbado se acalmar, sentado no chão, aproximou-se. O homem podia muito bem ter visto o rosto do pescador.
— Sim, vi o rosto do pescador – disse-lhe o bêbado, que parecia surpreendentemente sóbrio para alguém que tagarelava demais.
Tomou outro gole de cachaça e depois prosseguiu:
— O diabo do mundo é a nossa língua. Ela faz da gente o que quer, meu jovem. Animal tão complexo quanto os olhos. São os olhos fora e a língua dentro. Se deixar te domar, serás presa para o pescador.
Outra vez recorreu a outro gole da cachaça e continuou:
— Certo mesmo é que não devia haver lei contra a saciação. Não devia haver pescador. O que é a pessoa a não ser da gula e do corpo? Deixar de beber é ir contra os olhos e contra o paladar; é ir contra si mesmo.
Perder, não sabe se perdeu. Talvez seja bom ser derrotado porque se conhece o pescador.
Brasília, 25 de novembro de 2017 às 21:42.
Texto originalmente publicado
pelo Autor em 26/08/2003
no portal Usina de Letras.
A caipirinha. Narrativa do poeta Bomani Flávio.